Uruguay

Com Guillermo Foladori*

A nanotecnologia já está aqui

e pode mudar radicalmente o mundo

De passagem por Montevidéu para ministrar um seminário sobre nanotecnologia organizado pela UITA, o doutor Foladori fez um intervalo para manter uma conversa-entrevista com os autores deste texto que resume o essencial nesse intercâmbio.

 

-O que é a nanotecnologia?

-O termo “nano” refere-se a “tamanho”. Nanotecnologia (doravante NT) é a manipulação da matéria em escala nano métrica, sendo que um nanômetro é a milionésima parte de um milímetro. Os atuais microscópios atômicos podem escanear e perceber a superfície dos átomos e das moléculas e, portanto, passa a ser possível manipulá-los para criar nano partículas que depois se combinam para formar os produtos que posteriormente encontramos no mercado.

 

-E como isso pode influir na vida das pessoas?

-A novidade é que podem ser criados novos materiais combinando átomos e moléculas, assim como dotar os materiais já conhecidos com outras qualidades físicas; falamos de propriedades elétricas, de elasticidade, de resistência, características químicas totalmente diferentes. Para os cientistas, isto é uma completa revolução. Por exemplo: o carbono pode ter diversas formas, na grafite do lápis é extremamente macio, mas de carbono também são os diamantes, o elemento mais duro que se conhece. A NT pode recompor o mesmo material dos diamantes –o carbono– para fazer algo ainda mais duro. Da mesma forma, é possível fazer-se fibras –nano tubos de carbono– com uma supercondutividade elétrica que praticamente não perde energia no transporte. Quando falamos de partículas tão pequenas, sua superfície em relação à massa é maior, o que faz com que, do ponto de vista químico em termos de catalisadores ou reativos, sejam muito mais eficientes. Os cientistas estão redescobrindo as funções da matéria, como se fosse um brinquedo novo. Isto significa que os produtos da NT substituirão completamente os seus competidores clássicos ou convencionais. Tudo recomeça do zero.

 

-Já existem produtos da NT no mercado?

-90% de tudo isto ainda está na fase de laboratório. Por enquanto, os que mais difusão têm são, em geral, produtos de luxo, por exemplo os cosméticos. Uma das companhias que mais os utiliza é a L’Oreal, e praticamente todos seus produtos já contêm derivados da NT: certos filtros solares mais penetrantes na pele e muito mais eficientes que outros, por exemplo.

 

-Nessa questão das novidades científicas, da pesquisa em ciências, há também muito de luta de classes, de jogo de poder. Por exemplo, L’Oreal é uma empresa que pertence à maior corporação do setor de alimentação como a Nestlé. Este tema parece ser muito parecido com os transgênicos; é o ser humano brincando de Deus, criando sem nenhum limite, a não ser a sua própria imaginação e ambição. Mas, de fato não sabemos bem o que estamos fazendo e quais podem ser as conseqüências. Por exemplo, na Alemanha há neste momento um escândalo porque foi utilizado um produto em aerossol desinfetante de banheiros chamado “Mago Nano” cuja propriedade agregada pela NT era um maior poder bactericida residual. O escândalo surgiu porque algumas pessoas, que utilizaram o produto, foram internadas com água nos pulmões. Parece que já são 70 os internados nessas condições. Apesar de os fabricantes de “Mago Nano” assegurarem que este desastre não ter sido causado por eles, mas sim pela substância volátil utilizada para dar o efeito aerossol, o caso está sendo investigado com muita profundidade. Mas o problema é que não há ninguém com capacidade de controlar o conteúdo de um aerossol desse tipo, e também não existem leis, em nenhum país do mundo, que regulem a liberação de produtos da NT. É algo muito perigoso, é a lei de mercado em formas ainda mais cruéis que as já conhecidas.

 

-Enquanto for o mercado quem comanda a pesquisa não haverá nenhuma segurança. Até 2003 a maioria dos fundos de pesquisa mundial em NT provinha de subsídios governamentais, mas isso não significa que esse impulso tenha permanecido neutro em relação aos interesses em jogo. Em realidade, as grandes companhias utilizam suas influências nos governos para que eles impulsionem isto. 70% das quase 9 mil patentes que existem no mundo relativas à NT pertencem a grandes corporações. No caso dos Estados Unidos, as corporações estão sendo abastecidas pelas universidades que neste tema, até 2004, recebiam financiamento para pesquisa quase que exclusivamente do governo. Posteriormente as patentes eram adquiridas pelas corporações.

É verdade que não é possível detectar estes nano produtos, são tão pequenos que se diluem. Inclusive, um dos argumentos mais comuns para a pesquisa em NT é que a nível atômico não há distinção entre matéria viva e não viva, o que implica que poderiam ser introduzidas partículas inanimadas em organismos vivos sem serem rejeitadas porque não seriam diferenciadas das de sua própria constituição biológica. Quer dizer que são indetectáveis. No caso do aerossol mencionado pelo Enildo, justamente, ainda estão tratando de saber o que foi que mandou essa gente para o hospital. Não há provas de que haja sido o componente nano, e quem sabe se algum dia saberemos. Outro grande problema é a ausência de regulamentações específicas sobre NT. Alguns dizem que não é possível regulamentar algo que ainda se desconhece, mas por outro lado promovem o seu desenvolvimento, aplicação e liberação no ambiente.

 

Não se deve deixar passar que muitas das grandes corporações que promovem a pesquisa e aplicação da NT, ao mesmo tempo estão extremamente preocupadas com que os produtos obtidos sejam ambientalmente aceitáveis e inócuos para a saúde humana. Sua preocupação deriva da enorme velocidade com a que as aplicações de NT estão sendo desenvolvidas, podendo gerar um movimento de rejeição dos consumidores como já ocorreu com os transgênicos. Isto seria um golpe muito duro nos planos das corporações. Daí, seu afã de apresentar a NT e seus derivados como totalmente inócuos. A pergunta é: se eles não têm o rabo preso, por que não etiquetam os seus produtos? Se a NT é um valor agregado, por que não anunciá-lo?

Apenas em Taiwan existe um selo, uma etiqueta, que por decisão governamental identifica os produtos com componentes da NT. São apenas um pouco mais de 20.

 

-Se no mundo não existe a capacidade para controlar, em sua totalidade, os novos produtos químicos liberados a cada ano no mercado, menos ainda poderão fazer com estes, para o qual nem sequer existe hoje a tecnologia adequada. É possível que as empresas apelem à associação de seus produtos com “o ecológico”, “o verde”, tirando proveito de que, teoricamente, a NT não geraria desperdícios, o que permitiria dizer que estaríamos perto do desenvolvimento sustentável. Mas se isto continua avançando à mesma velocidade, implicará uma mudança radical na educação, no conhecimento. Como poderemos, os países do Sul, enfrentar este novo abismo que nos separará do Norte?

-Essa mesma pergunta está sendo feita pelos países desenvolvidos. Nos Estados Unidos estão discutindo como mudar os programas de ensino a partir do Ensino Fundamental. Atualmente, o estudo parcelado das ciências como física, química, biologia, ciências da informação e do conhecimento e informática, perde completamente seu valor. É necessário integrar estes conhecimentos desde o Ensino Fundamental. Na Europa estão debatendo a mudança nos ) programas do Ensino Médio. Será necessário uma grande quantidade de profissionais formados de maneira diferente à atual, e para isso há que começar agora mesmo.

 

-E na América Latina, que possibilidades teremos de modificar os programas de ensino da noite pro dia?

-É um enorme desafio. Pelo que sei, na América Latina, esta discussão está presente a nível oficial somente em Cuba, e desde 2002. Estão discutindo como modificar o ensino médio, sendo que não sei se já chegaram a alguma conclusão. Em nível de pós-graduação existe certa abordagem do tema no Brasil, na Argentina e no México. Em geral, analisam a idéia de criar doutorados específicos para centros de pesquisa de elite, mas não criar conhecimento de forma maciça.

 

-Para que é necessária a NT? Quem se beneficia com o seu desenvolvimento?

-Grande parte do mundo está convencida de que a técnica solucionará os problemas do desenvolvimento, ou do não desenvolvimento, da inovação e da pobreza.

 

-A NT virá para “acabar com a fome no mundo” como os transgênicos?

-É isso aí. E se pegarmos o documento do ano passado da equipe chamada “Task Force” (grupo de tarefas em inglês) das Nações Unidas, a equipe de assessores encarregada de antecipar o futuro em ciência e tecnologia, o documento diz, com todas as letras que “a NT virá para solucionar os problemas de pobreza no mundo”. Para eles os problemas da desigualdade requerem uma solução técnica, como, por exemplo, os relativos à fome, já que a NT poderá fazer com que a agricultura seja muito mais produtiva, que os medicamentos sejam muito mais eficazes, entre outras. No caso dos países desenvolvidos, o documento diz que a NT servirá para conservar a competitividade internacional.

Claro, já aconteceram tantas revoluções tecnológicas que prometiam a mesma coisa, como a informática e a biotecnologia, que as pessoas hoje estão prevenidas contra promessas.

 

-Segundo dizem, com a NT é possível construir robôs auto-replicantes. Como se controlaria essa capacidade?

-Há uma novela de Michael Crichton, “Presa”, que aborda justamente uma espécie de tomada do planeta por robôs auto-replicantes. Isso já tinha sido abordado por Eric Drexler, um dos cientistas mais renomados neste tema. A verdade é que é impossível saber o que pode chegar a ocorrer num caso assim, da chamada “Praga Verde”. Saber quem será beneficiado com o seu desenvolvimento é mais difícil a partir de nossos países, menos desenvolvidos e com menos possibilidades de subir neste trem que já não se pode frear, que já está aqui e terá uma presença crescente no mercado. Querendo ou não, a NT já está aqui. O Brasil, a Argentina e o México pensam que podem beliscar algumas patentes, mas isto não será nada em comparação com o que as grandes corporações poderão obter. A China é um dos países que mais está investindo nisto. Que influência pode ter a NT no mundo do trabalho? Parece que nessa área ocorrerão transformações hoje em dia inimagináveis, porque a NT poderia chegar a deixar uma enorme quantidade de pessoas desocupadas. A automatização chegará a tal extremo que o trabalho humano como o conhecemos hoje já não terá sentido. Será o fim do trabalho?

 

-É claro que a NT desemboca nisto que você fala, mais desemprego e tudo o mais, mas ao mesmo tempo aumenta a capacidade dos que detêm o poder de disciplinar a sociedade, porque a NT também será utilizada pelas Forças Armadas e policiais para vigiar, reprimir e disciplinar os perdedores. Já está sendo usada no mundo apesar de não existir a certeza de poder controlá-la, e muito menos de dirigir sua utilização em prol das maiorias?

-Conversando com um conhecido que tem uma fábrica de pinturas que contém nano partículas, ele me contou que mais de 60 % dos produtos de NT ele compra fora do país, na Ásia e Alemanha. Ele não quis me dizer como essas partículas entravam no país, porque era algo “confidencial”. Outro empresário me confessou que os nano componentes entram “em uma pasta”. É demasiado barato para preencher toda a papelada que seria necessária e, além disso, com uma prancheta de dez pequenos tubinhos, dava para a produção de um ano inteiro. Quer dizer que se transforma a noção de comércio internacional, porque o tráfico é incontrolável.

 

-Se se trata de algo inócuo não haveria problemas, seria democratizador.

-Não é qualquer um que tem laboratórios com capacidade para produzir usando a NT e, além disso, ninguém revelará os segredos de produção protegidos com patentes. Quem hoje quiser desenvolver NT precisa de muito dinheiro. É provável que haja mudanças substanciais no ranking das empresas mais poderosas como conseqüência dos acertos ou fracassos nas pesquisas patrocinadas. Imaginemos a utilização em massa de algo que já existe, como os calçados térmicos, que conservam o pé sempre na mesma temperatura, estando no Pólo Norte ou no Equador. O exército dos Estados Unidos já está usando esta inovação. Suponhamos que alguém comece a fabricar calçado esportivo assim, mil vezes melhor que todos os demais, quem vai comprar os “antigos”? A eficácia do novo calçado é total, absoluta, portanto o deslocamento de setores industriais inteiros será brutal, e as possibilidades de concentração do capital crescerão exponencialmente. Não haverá concorrência. E o mesmo acontecerá com milhões e milhões de outros produtos.

Estamos, portanto, frente ao que os economistas chamam de uma “revolução disruptiva”, que rompe com tudo o que havia antes. Em termos gerais, de patentes, publicações, produtos introduzidos no mercado, os Estados Unidos vão claramente pra cabeça, seguido do Japão, e já se fala que a China avançou muito em têxteis, e Israel em tecnologia militar.

 

-Como a NT pode impactar em termos de alimentação e agricultura?

-Temos que distinguir entre o que se pode fazer e o que se está fazendo. Teoricamente o possível é ilimitado, impossível de calcular. Há previsões de que os países desenvolvidos já não precisarão importar os alimentos que, por razões de solo ou de clima, não possam ser produzidos hoje. Para dar um exemplo, a Inglaterra poderia produzir suas próprias bananas em um laboratório. Mas isso talvez não vejamos nem mesmo em 20 anos. O que se está fazendo agora é acrescentar características especiais aos produtos que já existem: alfaces que permaneçam frescas durante seis meses, ou batatas-fritas empacotadas há alguns anos parecendo que acabaram de ser feitas.

 

-Serão realmente batatas? Podemos chamá-las assim?

-Ninguém sabe. Em poucos anos será possível consumir muitos produtos feitos no momento mediante NT, como sucos de frutas, refrigerantes, etc., elaborados ao gosto exato do consumidor e no tempo de apertar e soltar um botão. Os custos da empresa fabricante, como é óbvio, caem de forma abismal. Por outro lado, acredita-se que a produtividade agrícola poderá aumentar dramaticamente utilizando técnicas de NT no processo produtivo.

 

-Estes produtos serão verdadeiramente iguais aos naturais ou, como com os transgênicos, se buscará uma expressão parecida à “equivalência”?

-Será muito difícil saber se serão iguais ou não, ou equivalentes ou não, porque os componentes de NT dificilmente são detectáveis.

 

-Não deveria ser aplicado o princípio da precaução neste caso?

-Deveriam ter feito isso, certamente. Qualquer medicamento deve ser provado durante anos, seguindo estritos protocolos antes de poder ser lançado ao mercado. É um processo longo e caro. Entretanto, diante deste processo de mudança tecnológica que afeta todos os ramos da atividade humana no mundo inteiro, ninguém se preocupa em fazer um teste. A humanidade está embarcando num carro sem rumo, num trem de loucos. Os principais problemas serão para a saúde humana, porque as nano partículas são indetectáveis. Como saberemos de que maneira afetam a saúde antes que estejamos doentes ou inválidos? Pensemos também na redistribuição produtiva, no desemprego, no abismo entre aqueles que estarão “nano educados” e aqueles que não estarão. O que acontecerá em nossos países, em muitos dos quais nem sequer existe essa preocupação, nem sequer discutimos isso publicamente?

 

-Esse é um dos objetivos de sua passagem por Montevidéu…

-Estou escrevendo artigos e proferindo palestras em muitos lugares para tentar criar consciência do mundo em que estamos entrando, procurando que isto seja colocado na mesa de debate. Não é que eu ofereça uma solução, apenas tento alertar para a vinda de um trem a toda velocidade.

 

 

Enildo Iglesias e Carlos Amorín

© Rel-UITA

2 de junho de 2006

 

 

* É uruguaio, antropólogo, doutor em economia, especialista em meio ambiente e desenvolvimento, e em saúde e desenvolvimento com pós-doutorado em Sociologia do Meio Ambiente. Foi professor do doutorado do Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade Federal do Paraná, Brasil e de várias Universidades no México. Atualmente exerce a função de professor titular na Universidade de Zacatecas, México. É autor de vários livros, entre os quais se destacam “Por uma sustentabilidade alternativa” (UITA, 2005) e “Os limites do desenvolvimento sustentável” (Ediciones de la Banda Oriental, 1999).

 

 

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