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todas as tardes a essa hora na escola rural do povo de
Rincon’í, a 120 quilômetros de Asunción, a capital
paraguaia, as crianças dos cursos iniciais tinham se sentado
numa ronda. Não nos esperavam, e nossa chegada mudou por um
momento as atividades previstas. Quase a dois quilômetros
dali se encontra o prédio de um hectare onde em novembro de
1998 a empresa estadunidense Delta & Pine abandonou 660
toneladas de sementes pré-tratadas com quatro toneladas de
produtos químicos Para quem não conhece a história esse
lugar parece hoje um erval qualquer, mas a verdade é que ali
ocorreu a contaminação mais importante na história do
Paraguai.
Acompanhava-me María Segovia, porta-voz dos vizinhos
organizados para resistir e enfrentar as conseqüências do
“lixo tóxico”, como o chamaram os moradores do lugar. As
crianças sabiam bem o que aconteceu “lá” escassos 75 metros
de sua escolinha anterior que tiveram que abandonar.
Conheciam “as sementes da morte”. Falamos sobre a origem de
sua nova escola, lhes lembramos que ela foi construída pelos
seus próprios pais e mães, irmãos, irmãs e vizinhos. Entre
essas paredes frescas e grossas a palavra solidariedade
ecoou melhor que em qualquer outra parte do mundo,
solidariedade entre vizinhos, solidariedade de mais longe, e
também de muito mais longe: “Até de outras partes do mundo
chegaram voando telhas solidárias que se pousaram neste teto
que hoje nos dá sombra”, lhes dissemos. Associamos a palavra
dignidade a um tesouro mais valioso que todo o ouro do
planeta, mais grande e luzido que o céu, e ao mesmo tempo
tão pequenino e frágil que devemos guarda-lo no mais
profundo de nossos corações de onde nunca deverá sair, sob
nenhuma circunstância.
Nos
despediram com um até pronto, e isso será sem dúvida, apenas
até logo mais. Porque o juízo penal que desde faz quase seis
anos iniciou a comissão de vizinhos de Rincon’í contra os
responsáveis da contaminação que padecem está chegando a seu
momento culminante. Depois de ter passado por várias sedes
judiciais e ter enfrentado as mais incríveis manobras
dilatórias geradas pela poderosa banca de advogados que
defende a Delta & Pine, em novembro de 2003 os promotores
Hugo Ríos (penal) e Ricardo Merlo (ambiental) apresentaram
de maneira conjunta uma acusação na que pedem a condenação
de Nery Rivas, alto funcionário da Delta & Pine no Paraguai,
e de Julio Chávez, proprietário do prédio onde se despejaram
as sementes envenenadas, a quem acusam de diversos delitos,
entre eles do homicídio culposo de Agustín Ruiz, falecido
poucos dias depois do desastre como conseqüência da
contaminação com os agrotóxicos.
Outrossim, os
promotores solicitaram que se mantenha aberta à causa do
cidadão estadunidense Eric Lorenz, por aquele então
representante da Delta & Pine no Paraguai e principal
responsável dos fatos, quem desde faz vários anos se
encontra fugitivo da justiça paraguaia. Os promotores
solicitam que se requeira sua captura por meio de Interpol e
se formalize o pedido de extradição desde o lugar onde seja
detido. O enérgico parecer ministerial se baseia num mui
volumoso processo no qual abundam as provas da contaminação,
de suas conseqüências imediatas, a meio e longo prazo e quem
são os responsáveis diretos do dano causado.
Para o
promotor Ríos, “Nós fizemos simplesmente o trabalho que
nossa investidura nos exige. Cumprimos rigorosamente com
todos os requisitos legais e pensamos que conseguimos
produzir uma posição solidamente sustentada na análise dos
elementos contidos no processo”. Segundo Ríos, o juiz conta
com elementos suficientes para poder adotar uma sentença com
serenidade.
O promotor
ambiental Merlo, por sua vez, também se diz bastante
satisfeito com o trabalho realizado. “Quando este caso
chegou a nosso conhecimento -lembra hoje desde o Palácio de
Justiça- nosso escritório era apenas um gabinete para a rua
com uma mesa, três cadeiras e um telefone. Tínhamos muitos
menos recursos que agora. O desenvolvimento deste caso tem
ido acompanhando o de nossa promotoria. Apesar daquelas
limitações, acredito que cumprimos um bom papel. Agora só
podemos esperar a decisão do juiz”.
Germán Torres
é o nome do jovem juiz que faz poucos meses tomou entre suas
mãos o juizado penal de Paraguarí, onde se encontra o caso.
Expressou que já tinha tido tempo de interiorizar-se do
processo e que lhe faltava aprofundar a análise de dois ou
três pontos concretos. Assegurou que se tudo se desenvolve
como espera, a fim de maio ou princípio de junho estará
promulgando sua sentença.
A notícia tem
renovado a esperança das vítimas, ainda que sabem por
experiência própria que em matéria judicial as promessas
soem ser voláteis. Esta vez, contudo, todas as condições
estão dadas para que o desfecho finalmente se produza. Como
forma de apoiar essa vigília, as vítimas têm se proposto
desenvolver diversas atividades ao longo deste mês, entre
elas enviar uma delegação a Asunción para percorrer diversos
meios de imprensa com o objetivo de lembrar a tragédia que
viveram faz seis anos, e preparar uma grande manifestação
popular na frente da sede judicial de Paraguarí para o dia
no qual o juiz Torres faça pública sua sentença.
Ana María
Segovia, porta-voz e símbolo da luta de seus pares, afirmou
que se bem tem confiança na justiça paraguaia, não baixará a
guarda até que o dano causado a sua comunidade “seja
reconhecido legalmente, como primeiro passo antes que se
produza o necessário reconhecimento moral do sofrimento
provocado”.
Lá, em
Rincon’í, mais de 100 famílias camponesas estão olhando para
Paraguarí. Somemos nossos olhares aos seus, uma vez mais e
agora mais do que nunca.
Carlos Amorin
© Rel-UITA
12 de maio de 2004