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   Brasil

Água, doce preocupação

 

Estamos no Ano Internacional da Água Doce, estabelecido pelas Nações Unidas, e, às vésperas do Dia Mundial da Água -comemorado em 22 de março-, as preocupações com relação ao futuro da água vêm à tona e se mostram tão importantes e grandes como nos anos anteriores. Talvez até um pouco maiores. As estatísticas sempre são lembradas: 70% do planeta é constituído de água. Somente 3% são água doce e, desse total, 98% estão embaixo do solo, em lençóis freáticos. Ou seja, o montante disponível para uso e consumo dos cidadãos é quase insignificante perto da quantidade total de água na Terra. Apesar de parecer pouco, esta quantidade sempre foi suficiente para satisfazer as necessidades dos habitantes do globo. E se, como defendem especialistas, o volume de água que existe no mundo não diminui ou aumenta, apenas muda de estado, continuaria sendo suficiente, não fosse o componente mais importante desta equação: o crescimento, incessante, da população mundial.

 

Alie-se a isso pouco cuidado, responsabilidade e conscientização na gestão das águas, por parte de governos e pessoas. Eis o motivo para preocupações maiores e agravadas. As perspectivas - ruins, se persistirem algumas práticas irresponsáveis de uso da água, como a irrigação agrícola praticada atualmente - geram alertas como o emitido pelo recente relatório da ONU sobre o tema, lançado em início de março. Segundo documento, produzido pelo Programa Mundial de Avaliação dos Recursos Hídricos (cuja secretaria está a cargo da UNESCO), "na pior das hipóteses, sete bilhões de pessoas em 60 países estarão enfrentando falta de água na metade deste século. Na melhor das hipóteses, dois bilhões de pessoas em 48 países estarão nesta situação. Isto vai depender de fatores como o crescimento populacional e o desenvolvimento de políticas".

 

Fica claro, então, por que conceitos e temas como "governabilidade da água" e "privatização da água" têm recebido especial atenção dos especialistas, ambientalistas e estudiosos do assunto: eles dizem respeito ao modo como as águas são ou serão geridas e cuidadas. Embora nem todos necessariamente gostem do jeito como a água é compreendida e vista como "recurso" (no sentido econômico da palavra) dentro destes conceitos, a preocupação com eles se faz necessária. Outra preocupação constante entre quem se dedica ao assunto é com o modo como as pessoas, em suas casas, bairros e cotidianos, enxergam e tratam a água. Ou seja, a forma como cuidam deste recurso, para uns, e ser vivo, para outros.

 

"Governabilidade da água é um conceito surgido durante o II Fórum Mundial da Água, em 2000, e que diz respeito às estruturas de gestão da água no planeta", define Gilberto Marcelino, coordenador do Instituto Vis Viva. "A governabilidade tem a ver com quem é quem, quem é responsável pelo que, quem é dono de que, mecanismos de controle externo, definição de quem são os gestores, quais órgãos se inserem nos sistemas de gestão etc.", explica Ninon Machado, diretora do Instituto Ipanema. No documento "Governabilidade das Águas para as Américas - Uma tarefa inacabada", Humberto Peña e Miguel Solanes - respectivamente presidente do Comitê Consultivo Técnico para América do Sul da Global Water Partnership e assessor regional sênior da CEPAL e membro do Comitê Consultivo Técnico para América do Sul da Associação Mundial da Água - explicam como o conceito tomou formas mais fortes: "No Marco para a Ação apresentado no II Fórum Mundial da Água (Haia, 2000), com o objetivo de proporcionar segurança hídrica para o desenvolvimento da humanidade no início do Século XXI, estabeleceu-se que a crise da água é, freqüentemente, uma crise de governabilidade, o que levou a se identificar a necessidade de se colocar a governabilidade eficaz da água como uma das principais prioridades de ação."

 

A governabilidade trata, portanto, de estabelecer os sistemas, órgãos, critérios e metas da gestão das águas. Por que é tão importante pensar no assunto? Porque, se os recursos hídricos não forem explorados de maneira sustentável, as fontes podem, quase literalmente, secar, desequilibrando a equação de disponibilidade da água. Não que a água deixaria de existir - mas estaria fora das possibilidades de alcance e consumo dos humanos. Maria do Carmo Zinato, pesquisadora do Florida Center for Environmental Studies e criadora e coordenadora do informativo Fonte d'Água, lembra que, apesar da água ser considerado um bem da humanidade, cabe a cada nação o dever de geri-la. No Brasil, cumpre a função de definir as estruturas oficiais de manejo dos recursos hídricos a Lei 9.433, de 1997, também conhecida como Lei das Águas. Ela institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, que engloba uma série de órgãos e procedimentos que dizem respeito ao assunto, como o Conselho Nacional de Recursos Hídricos e os comitês de bacias hidrográficas.

 

Água privada

 

São estas estruturas que vão decidir sobre um outro tema bastante atual no mundo todo, e também bastante polêmico: a privatização da água. Por conter o componente econômico, o tema imediatamente provoca reações inflamadas. "Percebo uma confusão a respeito do assunto e muitos não entendem que, normalmente, quando se fala em privatizar a água, fala-se em privatização dos serviços - tubulação, distribuição etc.", relata Maria do Carmo Zinato. Ela lembra ainda que em muitos lugares do Brasil, principalmente nas cidades, já se paga por estes serviços (geralmente executados pelos municípios) e que, com a privatização, o temor é que o custo seja maior para o cidadão - pois empresas procuram lucros.

 

Foi o que aconteceu na Bolívia, em 2000, quando privatizaram os serviços de distribuição de recursos hídricos e pessoas que até então não pagavam pela água se viram obrigadas a arcar com taxas altas. A mobilização popular foi tanta que a situação foi revertida. Já "em Gana, pagava-se 10 cents por metro cúbico de água encanada, antes de ser privatizada. Após, os ganenses passaram a pagar 70 cents", lembra Gilberto Marcelino.

 

Voltando ao Brasil, existem isenções e descontos para pessoas carentes - os quais também se teme que sejam perdidos em caso de privatizações de serviços. "O argumento não político contra a privatização é que as pessoas carentes podem perder a isenção. No entanto, só vejo indivíduos e organizações se opondo, ao invés de explicarem suas posições, fazendo as ressalvas que consideram necessárias", enfatiza Maria do Carmo. Além da cobrança pelos serviços, existe também a possibilidade de cobrança pelo uso de recursos hídricos, prevista na Lei das Águas - o que, apesar de se aplicar a todos os indivíduos, deve atingir majoritariamente empresas, que pagarão por retirar o recurso do meio ambiente. Embora ainda não completamente implementada, tal cobrança pode também trazer ônus financeiro aos cidadãos e cidadãs: é provável que as companhias repassem, mesmo de forma velada, o custo para os consumidores.

 

Por isso, segundo Ninon Machado "existem outras formas de parceria entre os setores público e privado, mais eficientes e que não tragam as conseqüências que as atuais formas de privatização trazem". Já Gilberto Marcelino acredita que existe um estratégia, mesmo que velada, para levar à privatização de todos os serviços de água no Brasil. "Para que a água chegue a todos, é preciso fazer grandes investimentos. Os governantes dizem que não têm recursos financeiros para tanto. Ou seja, a solução seria privatizar. Isso está de acordo com o Estado mínimo que prevê o neo-liberalismo, prática que vem ou vinha guiando os governos no Brasil", afirma.

 

Um jeito novo de ver, sentir e cuidar

 

Há, no entanto, quem se preocupe mais com o que as pessoas estão fazendo no dia-a-dia do que com práticas, conceitos e temas consolidados pelos governos, apesar de atentos a eles. É o caso dos integrantes do projeto Gente Cuidando das Águas, que recentemente produziu um livro homônimo que traz "meia dúzia de toques e uma dúzia de idéias para um jeito diferente de ver, sentir e cuidar da água", como diz a capa da publicação. Um dos idealizadores do projeto e autor do livro, Demóstenes Romano dá sua opinião: "Com relação ao que vem sendo discutido, é uma falácia a afirmação de que a água vai acabar. Isto pode não ser feito à toa, pode haver segundas intenções, como levar à privatização da água. Mas, mesmo assim, este não é o tema mais relevante. O que importa é que, enquanto tratarmos a água como recurso, e não como ser vivo, ela sofre. Não estamos falando de nenhuma doutrina religiosa ou esotérica. É a natureza: a água é um ser vivo como a vaca, a arara, a galinha, eu e você."

 

O projeto Gente Cuidando das Águas defende que as pessoas tenham esta visão mais direta e simples sobre a água e mudem muitos dos seus hábitos diários. "Precisamos empoderar, fortalecer os cidadãos. Não é o ministro, nem o prefeito, nem o secretário de meio ambiente que joga coisas erradas nos rios. São as pessoas, e são elas que têm que consertar". O projeto pretende conscientizar ao menos aqueles que considera os "poluidores" mais freqüentes das águas: os pequenos e médios agricultores, trabalhadores domésticos e donas-de-casa - para que, sabendo o que e como fazer, exerçam de fato sua cidadania pela e para com a água. Segundo Demóstenes, "para uma gestão cidadã, que é o que pode fazer a diferença, precisamos que as pessoas aprendam. Vivemos em uma cultura muito governabilizada. Precisamos desmamar do governo e tocar as pessoas, mostrar para a Dona Maria ali da esquina que as atitudes dela podem fazer mudar alguma coisa. São pequenos gestos. E só as pessoas podem fazer a diferença - para o bem ou para o mal".

 

Maria Eduarda Mattar

Convenio Rel-UITA - LA INSIGNIA

Rits. Brasil, março de 2003.

 

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