A natureza, a esquerda e novos valores

 

O relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas divulgado recentemente é um alerta definitivo sobre as conseqüências da ação humana sobre o clima e as dificuldades que advirão nos próximos anos

 

O que parecia relegado a um futuro distante e que atingiria populações isoladas agora é sentido em todos os povos. As ondas de calor excessivo, as secas e catástrofes são a ponta do iceberg da insensatez do modelo produtivo capitalista que se ancora nos paradigmas do cientificismo mecanicista que opõe, desde seus primórdios, o homem à natureza, a razão à experiência, a verdade aos sentidos, o subjetivo ao objetivo.

 

A matriz do pensamento ocidental baseado na dominação da natureza mostra hoje seu esgotamento e expõe a fragilidade do pensamento cientificista e do antropocentrismo reinante em nossa cultura. Tal matriz hegemônica não foi devidamente confrontada por parte dos movimentos de esquerda que optaram por leituras descontextualizadas dos escritos de Marx, principalmente em sua ênfase economicista.

 

Dessa maneira grande parte dos movimentos sociais, em especial o sindicalismo centrou esforços nos aspectos econômicos mais imediatos do conflito capital/trabalho, como salários e empregos, deixando de lado tudo aquilo configurado em torno da subjetividade, como o afeto, a necessidade de sentido, o indivíduo e as idiossincrasias.

 

Ao mesmo tempo em que o sindicalismo teimou em negar tais horizontes, o capital nunca deixou de modernizar suas formas de re-significação, como o exemplo do toyotismo e seus aspectos subseqüentes como a qualidade total e outros que souberam operar a subjetividade do trabalhador a ponto de forjar-lhe uma identidade submissa aos interesses da grande empresa.

 

A cultura também negligenciada pelos movimentos de esquerda sempre foi pauta do capitalismo reinante, como exemplo da indústria midiática norte-americana que construiu ao longo dos anos o mito da democracia e é o carro chefe do processo de massificação globalizada.

 

Esses exemplos dão conta da magnitude do projeto capitalista que, ancorado no individualismo e na renovação constante das promessas de horizontes de realização material (ganhar na loteria, conseguir um emprego, comprar um carro, etc), encontra terreno fértil nas mais diversas culturas. As religiões que se baseiam no antropocentrismo, machistas por conseqüência e reducionistas por necessidade fracassaram como caminhos para um mundo melhor. Infelizmente são maioria, dos suicidas do Oriente Médio aos palácios do Vaticano, todos reprimem a magia, a mulher, a paixão e a natureza.

 

E é essa natureza com sua magia e feminilidade que está em foco hoje, com o clamor de cientistas e ambientalistas que agora são levados a sério. Não mais simples excentricidade, mas apelo por uma mudança necessária para, pelo menos, minimizar a dor dos tempos vindouros.

 

Padrões de consumo devem ser repensados. Não basta o uso de novos combustíveis como o etanol que, apesar de não poluir, consome enormes quantidades de água e tira o espaço do plantio de alimentos. Como exemplo, para encher o tanque de um utilitário esportivo com etanol, são necessários 250 kg de milho, alimento que poderia suprir uma pessoa por um ano!

O mito do crescimento como único horizonte possível é uma quimera.

 

Dir-se-ão que é um exagero, que precisamos de proteína, de madeira, de minério, dos empregos, etc, etc. Do mesmo modo que a indústria do petróleo, a exemplo do cigarro, vem hoje a público contestar o relatório da ONU, afirmando que o aquecimento global não tem ligação com a atividade humana. Não nos enganemos, tudo o que puder manter capitalistas e esquerdistas acomodados em sua zona de conforto e em seus sonhos particulares de felicidade e poder será lembrado e usado para manter-se o status quo.

 

Haverá sempre alguém a clamar pela democratização do acesso a Disney e às pick-ups diesel. Porém tudo indica que essa festa não poderá ser desfrutada no salão do planeta Terra. O perigo é que o canto da sereia do consumo, seus confortos e o medo de perdê-los coloca lado a lado capitalistas, Estado e proletariado, uns prometendo investimento, outros empregos e os terceiros esperando um futuro melhor. Nesse jogo todos nós perdemos.

 

Faz-se necessário compreender as bases do sistema produtivo atual, firmadas em padrões de consumo nocivos e numa distribuição desigual dos recursos. Também é fundamental questionar mitos como o do crescimento econômico e a sacralidade da propriedade privada. Diante do desafio futuro, novos laços sociais devem ser construídos. Novos coletivos baseados na preservação dos recursos naturais, na economia solidária e nas comunicações e interações em redes. Coletivos não massificados, mas que utilizem ao máximo as capacidades individuais em torno de projetos comuns.

 

Cleber Rodrigues de Paula*

© Rel-UITA

10 de maio de 2007

 

 

* Mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal de Santa Catarina.

 


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