Há muito tempo nosso
povo se angustia com as secas no Nordeste, que
flagelam terrivelmente as populações mais pobres,
forçando inclusive a imigração de milhões de
brasileiros para outras regiões do país. As secas de
1825, 1827 e 1830 marcaram o início da açudagem no
semi-árido e desde então são discutidas providências
para atenuar as secas e socorrer os sertanejos.
O projeto do governo de transposição de águas do São
Francisco é apresentado como uma solução para
enfrentar a escassez de água no Nordeste
setentrional. Assim, ao justificar dessa forma o
malsinado projeto, ficou posta em questão uma
política aplicada há mais de 180 anos, alardeada
como indispensável para o Nordeste Política sempre
condenada por Celso Furtado, Francisco de Oliveira,
Aldo Rebouças e tantos outros especialistas.
A crítica a essa política decorre de razões até
elementares. Em primeiro lugar, porque, embora tenha
consumido imensos recursos do Poder Público, durante
mais de um século e meio, seus resultados não
modificaram aquele quadro descrito com tanta
pungência por Raquel de Queiroz em seu livro "O
quinze" . Em segundo lugar, porque deve-se a tal
política a criação da chamada "indústria da seca".
Além disso, porque usando como pretexto o auxílio às
populações flageladas, essa prática tornou-se a
escora de uma estrutura social reacionária e
oligárquica que domina o Nordeste.
Como justificativa para seu projeto da transposição
de águas do São Francisco o governo federal enfatiza
que a escassez de água na região impede a
sobrevivência das populações nordestinas em
condições dignas. Portanto, não denuncia que fatores
sociais, econômicos e políticos são os maiores
responsáveis pela pobreza e pelas dificuldades em
que vive a maioria dos nordestinos.
Ora, será que a escassez de água é a causa
fundamental dessa situação no semi-árido? A
falsidade dessa análise foi evidenciada pelo
agrônomo José Guimarães Duque, considerado como o
grande especialista em agricultura do Nordeste, que
afirmou : "É um erro pensar só em água. Se água
fosse o mais importante, as margens do São Francisco
e as do Parnaíba seriam dois vergéis, quando são
dois desertos, e o Maranhão chuvoso seria próspero".1
Celso Furtado endossava essa tese, afirmando " ...
hoje sabemos que a escassez de água é apenas um dos
componentes do problema".2
A realidade do semi-árido
O governo do presidente Lula ao invés de propor uma
revisão dessa velha política de "combate às secas",
lança o projeto da transposição de águas que, na
verdade, nada mais é do que a continuação e o
fortalecimento e tudo que foi realizado há mais de
um século e meio em benefício de uma minoria de
privilegiados no Nordeste. E para tanto apresenta
uma visão errônea do semi-árido.
Para se entender a extensão desse equívoco
fundamental é imprescindível recapitularmos as
características básicas do semi-árido. Nos
documentos elaborados em discussões organizadas por
Dom Luiz Flávio Cappio, assim é sintetizada essa
realidade: "Embora no imaginário nacional seja vista
como uma região seca, tem uma pluviosidade de 750
bilhões de metros cúbicos por ano ... {quando apenas
são aproveitados 30 bilhões}... tem águas de subsolo
e muita água estocada em açudes. Entretanto, essa
pluviosidade é irregular no tempo e no espaço, além
de sofrer intensa evaporação das águas estocadas a
céu aberto."3
Além disso, resta acrescentar que o nosso semi-árido
é o mais populoso do mundo, sendo a região
brasileira de maior densidade rural. Por isso, o que
ali acontece comove a nação brasileira.
Então, particularmente os que nunca estiveram no
semi-árido devem ter presente essa descrição de
Celso Furtado - "É uma zona sui generis. Quem viajar
pelo Nordeste semi-árido, tendo conhecido áreas
desérticas de qualquer parte do mundo, percebe logo
a diferença. A nossa caatinga sertaneja que o
selvagem já chamava de "floresta branca", é fenômeno
quase único. Constitui abundante revestimento
florístico, de zona semi-árida, totalmente adaptado
às condições específicas do solo e clima. Durante
longo período seco que ocorre todos os anos .... a
caatinga se defende, usando parcimoniosamente suas
reservas de água. Ao anunciar-se o novo inverno, na
certeza de que poderá renovar essas reservas,
sacia-se sofregamente, dando lugar a esse espetáculo
maravilhoso por sua instantaneidade que é a
transfiguração daquele montão de gravetos secos em
bosque verde".4
A água existente no Nordeste setentrional
Ademais, para se entender a real situação no
Nordeste setentrional é indispensável ter em conta a
água com que ali se pode contar. Em primeiro lugar,
aquela região dispõe de uma boa rede de açudes.
Segundo Alberto Daker (professor da Universidade
Federal de Viçosa) nele há mais de 70 mil açudes
particulares e mais de 400 açudes públicos de médio
e grande porte, com uma capacidade de armazenamento
de 30 bilhões de metros cúbicos de água.
O Ceará tem quatro vezes o volume de água de que
necessita. Com a construção do açude de Castanhão (o
maior da América Latina) o abastecimento de
Fortaleza estará resolvido pelos próximos 30 anos5
No Rio Grande do Norte - segundo um documento da sua
universidade federal - com os recursos disponíveis
não há carência de água, estimando-se que durante
duas décadas a população pode ser abastecida.
É certo, porém, que em determinadas regiões dos
estados nordestinos é precário o abastecimento de
recursos hídricos, em conseqüência da insuficiência
das redes de distribuição. E estudos abalizados
assinalam a grave e permanente escassez de água em
áreas do sertão pernambucano, que, aliás,
inicialmente nem foram contempladas no projeto da
transposição do São Francisco.
Em 1959, Celso Furtado foi chamado por JK para
estudar e traçar um plano para o Nordeste. Cumprindo
essa missão, o economista paraibano acentuou que não
mais se deveria inutilmente combater as secas e
apontou o erro de se enfrentá-las com "soluções
hídricas, com grandes projetos de engenharia". Para
ele, a seca é mais um problema social do que um
problema da natureza.6
A justificativa da "segurança
hídrica"
Cumpre assinalar que há um dado novo nessa discussão
atual em torno do projeto da transposição do São
Francisco. O lobby, que sempre se beneficiou com a "indústria
da seca", não está reivindicando verbas federais
para ampliar a rede de açudes. Isto porque, como
tornou-se evidente a salinização acentuada da água
nos açudes e como é conhecida a quantidade
fantástica que deles se evapora, agora o lobby
proclama a urgência de ser levada águas do Velho
Chico para o Nordeste setentrional a fim de ali
haver "segurança hídrica". E afirma que essa medida
é indispensável porque os "donos" dos açudes receiam
liberar água dos reservatórios porque não sabem
quando acontecerão novas chuvas.
Esse argumento da "segurança hídrica" pode
impressionar os incautos porque há um generalizado
anseio por segurança em todos setores da vida
nacional. No entanto, essa falácia esboroa-se com
facilidade porque os beneficiados por tal "segurança"
são principalmente os proprietários de açudes ou
aqueles que os controlam. Mas, é justo que o país
gaste bilhões de reais, com o projeto da
transposição, para dar essa "segurança" aos que
controlam os açudes, quando uma autoridade
insuspeita, como Jerson Kelman, ex-presidente da
Agência Nacional de Águas, afirma que muitos "açudes
têm sido historicamente operados segundo as
necessidades de pequenos grupos que se beneficiam do
investimento público como privado fosse"?7
Análise completada e endossada pela Comissão
Pastoral da Terra ao asseverar que "70% dos açudes
públicos do Nordeste não estão disponíveis para a
população".
Convivência com o
semi-árido
Em relação às secas, qual deve ser a política
daqueles que defendem os interesses da população
sertaneja? Parece claro que devemos seguir o exemplo
dos esquimós que sabem conviver com o gelo e o
inverno. Isto é, se não podemos substituir esse meio
ambiente por outro, é possível e se deve conviver
com ele. Enfim, a solução reside numa compreensão
correta a respeito desse meio ambiente tão singular,
estabelecendo notadamente um sistema eficaz e
integrado para gerenciar os recursos hídricos.
Ademais, é uma imposição o repúdio aos que desejam
dar prioridade à realização de grandes obras de
engenharia hidráulica.
Essa convivência implica a captação e a conservação
inteligente da água da chuva de modo a que não
evapore. Daí a importância de recolher a água em
cisternas de placas para o consumo doméstico e a
construção de micro barragens subterrâneas, de
cisternas de produção etc. Com esse entendimento,
passa a ser fundamental o êxito do programa de "um
milhão de cisternas", lançado e impulsionado pela
"Articulação no Semi-árido Brasileiro - ASA".
Campanha apoiada pela Cáritas, pela Comissão
Pastoral da Terra e por centenas de entidades
sociais.
Naturalmente, outras medidas, objetivando o bom
aproveitamento da água, devem nortear a conduta dos
que vivem no sertão. Entre essas práticas está a
mudança nos sistemas de irrigação, no plantio de
vegetais e na criação de animais, optando por
aqueles que economizem água.
Esse caminho é um dado essencial de um modelo de
desenvolvimento sustentável do Nordeste, tema que
reclama um intenso debate na sociedade brasileira. É
possível, portanto, que, agora, tenha chegado a hora
e a vez de uma política adequada ao semi-árido.
Marco Antônio Tavares Coelho
Convenio
La Insignia.
/ Rel-UITA
5 de
maio de 2006