Responsáveis pela produção de grande parte dos alimentos
básicos consumidos no país, os pequenos proprietários rurais
resistiram por muito tempo ao humilhante desprezo das
autoridades públicas, sempre mais atentas aos interesses dos
grandes fazendeiros - na esfera municipal mediante um
servilismo explícito, e nos âmbitos estadual e federal com a
concessão de empréstimos a juros simbólicos e prazos a
perder de vista.
Sem
crédito, carentes de assistência técnica, obrigados a
transitar por estradas vicinais precárias, sem acesso aos
serviços de saúde, trabalhavam do nascer ao pôr-do-sol, com
folga apenas nas tardes de domingo. E, mesmo entregando a
safra a atravessadores a preços muito inferiores ao valor
real, ainda assim realizavam o milagre de plantar e colher
com razoável sucesso.
A maioria
resistiu enquanto pôde. Mas, com a aceleração da
industrialização, esse contingente rural foi atraído para as
cidades, num êxodo que atingiria o auge nos anos 1970,
quando foi criado o Proálcool, o programa de incentivo ao
cultivo da cana-de-açúcar. Como precisavam de muita terra
para o cultivo da cana, os usineiros, sempre amparados pelos
cofres públicos, desencadearam um assédio permanente aos
sitiantes, propondo-lhes a compra ou o arrendamento da
propriedade. Diante da possibilidade de realizar o sonho de
desfrutar do "conforto" da cidade garantido pelas
mensalidades do arrendamento ou pelos rendimentos dos
recursos conseguidos com a venda do sítio, muitos entregaram
as terras para as empresas sucroalcooleiras.
Ao cederem o solo para o cultivo da cana, os pequenos
proprietários contribuíram decisivamente para a criação da
alternativa energética aos combustíveis fósseis, mas, em vez
de serem reconhecidos por isso, esses sitiantes tornam-se,
agora, as primeiras vítimas dos supostos reflexos da crise
financeira global sobre o setor de açúcar e álcool..
Sem nenhum indicador negativo justificável, usinas do oeste
paulista estão optando pela moratória unilateral nos
pagamentos aos arrendadores.
"Profundamente constrangidos, levados por motivos alheios à
nossa vontade, que são de conhecimento público, a molde das
demais usinas de açúcar e álcool da região, vimos comunicar
que temporariamente não iremos efetuar os pagamentos mensais
relativos ao arrendamento", afirma correspondência recebida
no final de janeiro por um proprietário da região de São
José do Rio Preto, cujo conteúdo foi publicado pela imprensa
local.
Na mesma
semana em que esse comunicado era tornado público, foram
divulgados números extremamente favoráveis ao setor
sucroalcooleiro, como os da Secretaria de Petróleo, Gás
Natural e Combustíveis Renováveis do Ministério de Minas e
Energia, indicando que, em 2008, o Brasil bateu o recorde na
exportação de álcool, com a venda de 5,16 bilhões de litros.
No mercado interno, não se tem notícia de queda no preço do
álcool pago pelo consumidor, nem de encalhe na produção.
Pelo
contrário. Simulação do Rabobank publicada dia 11 último por
este jornal indica que, ainda que ocorra a acentuadíssima
queda de 50% na venda de veículos este ano, a demanda por
etanol, mesmo assim, crescerá 2,44 bilhões de litros. O
cenário positivo vale também para
o açúcar, em relação ao qual existe até certa euforia.
Notícia divulgada também por este jornal no começo do mês
prevê que, na safra 2009/10, a produção brasileira de açúcar
será 11% maior, impulsionada pelo mercado internacional.
Ao optarem por este tipo de moratória , os donos dos
canaviais não utilizaram nenhuma justificativa convincente,
atendo-se apenas à crise do sistema financeiro global, de
cuja estrutura também se aproveitou Bernard Madoff, o
megatrambiqueiro de US$ 50 bilhões, para lesar investidores
no mundo todo.
Nesse caso
as vítimas são grandes investidores, tomados de
incontrolável ambição, e cujo dinheiro nem sempre tem origem
lícita. Os que cederam terras às usinas e estão sem receber
são modestos sitiantes, muitos dos quais têm no arrendamento
a única fonte de renda. São as primeiras vítimas de um
comportamento que pode se alastrar para outros setores,
entre os quais a "crise" também pode ser usada como pretexto
para moratórias muito mais ambiciosas em valores e
desrespeito às pessoas de bem.
Gabriel
de Salles
Gazeta
Mercantil
27 de
febrero de 2009
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