Os frutos das angiospermas variam bastante de uma espécie
para outra, seja em tamanho, forma, cor ou textura. Apesar
disso, todos cumprem um papel duplamente vital: proteção e
transporte de sementes. Quer dizer, ao mesmo tempo em que
serve de embrulho e proteção, o fruto funciona como veículo
de transporte. Essa natureza ambivalente é particularmente
notória no caso de frutos zoocóricos (transportados por
animais), que tendem a ser pesados, carnosos, globosos e de
cores vistosas (avermelhados, por exemplo); em contraste com
frutos anemocóricos (levados pelo vento), que tendem a ser
leves, secos, aerodinâmicos e de cores neutras (como o cinza)
[1].
Entre as angiospermas que freqüentemente se propagam de modo
vegetativo (e.g., gramíneas), a produção de sementes pode
ser uma via reprodutiva meramente suplementar; para as
outras, no entanto, a produção de sementes representa a
principal ou mesmo a única via reprodutiva. Não é de
estranhar, portanto, que a biologia de sementes seja um
campo de pesquisa tão importante na botânica contemporânea
[2], com destaque talvez para as investigações que envolvem
a germinação. Esses estudos quase sempre são conduzidos
dentro de microcosmos simplificados (e.g., estufas ou
casas-de-vegetação), tendo por objetivo identificar as
circunstâncias ambientais (temperatura, insolação,
disponibilidade de água etc.) sob as quais as sementes de
determinada espécie conseguem germinar. As repercussões
econômicas desse tipo de pesquisa são relativamente óbvias e
diretas, principalmente quando envolvem plantas cultivadas.
E é isso o que em parte explica porque a literatura sobre o
comportamento de sementes em laboratório é tão ampla e
numerosa. Em contrapartida, porém, pouco sabemos sobre a
biologia de sementes em hábitats naturais, principalmente
nos trópicos [3].
Em termos biológicos, as sementes que uma árvore armazena em
seus frutos equivalem aos ovos que uma ave deposita no ninho.
É verdade que árvores em frutificação não passam por certos
dilemas que as aves enfrentam na estação reprodutiva (e.g.,
permanecer no ninho, protegendo os filhotes, ou abandoná-lo
temporariamente em busca de comida), mas há problemas e
conflitos que são comuns a ambos - e.g., conflito de
gerações e disputas fraticidas [4]. O pano de fundo de toda
essa situação talvez possa ser resumido por uma pergunta
aparentemente simples: o que fazer com os recursos
disponíveis para investimentos reprodutivos? Em outras
palavras, como alocar os recursos disponíveis de modo a
maximizar as chances de estar representado na próxima
geração por um ou mais descendentes?
A princípio, há um leque de possibilidades. Por um lado, as
mães (árvores, aves etc.) podem gerar uma grande quantidade
de descendentes, alocando poucos recursos em cada um deles;
por outro, elas podem gerar um número reduzido de
descendentes, dotando cada um de estoque maior de recursos.
No caso das angiospermas, a questão poderia ser colocada nos
seguintes termos: dada uma certa quantidade de biomassa, a
árvore-mãe deveria empregá-la para produzir muitas sementes
pequenas ou poucas sementes grandes? Em números: dado o
equivalente a um quilo de biomassa, a árvore-mãe deveria
converter tudo isso em 10 mil sementes de 0,1 g cada, em 100
sementes de 10 g ou, quem sabe, em uma única supersemente de
1 kg?
Como não é possível maximizar quantidade (número de sementes)
e qualidade (peso das sementes) dos descendentes ao mesmo
tempo, devemos esperar que algum tipo de meio-termo evolua,
de acordo com as circunstâncias [5]. Temos aqui, na verdade,
uma regra biológica universal: quantidade e qualidade tendem
a variar de modo inversamente proporcional - quando um
aumenta, o outro diminui, e vice-versa. Nossa própria
espécie enfrenta esse dilema em inúmeras questões
cotidianas, ainda que alguns políticos e ideólogos costumem
dar a impressão de que não há limites e de que tudo seja
possível. Um exemplo terrivelmente comum tem a ver com o
tamanho das famílias humanas: à medida que o número de
filhos de um casal aumenta, os cuidados dispensados a cada
um deles individualmente tendem a diminuir [6].
Níveis
de variação
Variação no tamanho de frutos e sementes é um fenômeno
facilmente documentado. Basta pensar em alguns frutos
familiares, como melancias, laranjas e abacates. Melancias
são grandes e pesadas, mas carregam numerosas sementes
relativamente pequenas; laranjas são menores, mas
transportam sementes de tamanho equivalente; já os abacates
são de tamanho intermediário, mas carregam uma única
supersemente. Entre as angiospermas, o espectro de variação
no peso das sementes se estende por mais de 10 ordens de
magnitude: indo desde as minúsculas sementes de algumas
espécies de orquídeas, cujo peso está na ordem do
milionésimo de grama (0,000001 g), até as gigantescas
sementes de algumas palmeiras, cujo peso supera duas dezenas
de quilos (20.000 g) [7]. Quando comparamos sementes de
espécies diferentes, as diferenças de tamanho costumam ser
óbvias, mas qual seria o resultado se as comparações fossem
feitas dentro de uma mesma espécie?
Até pouco tempo atrás, o tamanho das sementes era tido como
um parâmetro específico pouco ou nada variável. Quer dizer,
o peso das sementes seria uma grandeza mais ou menos fixa
para cada espécie. Dependendo das circunstâncias, a árvore-mãe
poderia então ajustar o número de sementes em seus frutos,
já que o tamanho de cada uma delas estaria sob controle bem
mais rigoroso. Hoje, sabemos que não é bem assim. Nas
últimas décadas, diversos estudos documentaram a existência
de variação intraespecífica no peso das sementes, em todos
os níveis: diferenças entre populações, diferenças entre
plantas individuais de uma mesma população, diferenças entre
frutos de uma mesma planta e, por fim, diferenças entre
sementes de um mesmo fruto [8]. Além disso, há também um
componente temporal de variação - e.g., o peso das sementes
pode variar dentro de uma população, em anos diferentes. (Na
próxima vez que for a uma mercearia ou a um supermercado, o
leitor pode fazer um teste: verifique os sacos de feijão e
observe se o tamanho das sementes varia apenas entre tipos
diferentes de feijão ou também dentro de cada tipo.)
Mas qual seria, então, o significado de toda essa variação
intraespecífica? Primeiro, é preciso notar que sementes
pequenas carregam um embrião pequeno e uma pequena
quantidade de material de reserva, enquanto sementes grandes
carregam embriões maiores e uma quantidade maior de
reservas. Essas diferenças de tamanho podem ter duas
consequências biológicas importantes: (i) afetar o intervalo
de tempo durante o qual as sementes permanecem viáveis no
solo (e.g., sementes maiores poderiam permanecer enterradas
por mais tempo, aguardando o momento "certo" para romper a
dormência); e (ii) após a germinação, influenciar o tamanho
e o vigor de crescimento das plântulas. Esta última
influência pode se estender por um período relativamente
longo na vida dos descendentes e caracterizaria um tipo de "efeito
materno" [9].
De um jeito ou de outro, a variação intraespecífica no
tamanho das sementes poderia representar uma resposta
evolutiva às incertezas que cercam o estabelecimento das
plântulas [10] - seria assim um modo da árvore-mãe espalhar
seus riscos de perda. Essas incertezas são geradas tanto
pela heterogeneidade física do hábitat (e.g., os sítios
seguros para germinação são relativamente raros e estão
sempre mudando de endereço) como também pela atuação de
inimigos naturais. E o que não faltam aqui são inimigos
naturais; afinal, sementes são uma fonte concentrada de
recursos valiosos, de tal forma e a tal ponto que muitos
consumidores animais passam a vida inteira se alimentando
exclusivamente delas - alguns até mesmo dentro delas, como o
popular caruncho do feijão!
Felipe A. P. L. Costa
(*)
La Insignia / Rel-UITA
05 de abril de 2005
Notas
* Biólogo
meiterer@hotmail.com, autor do livro ECOLOGIA, EVOLUÇÃO & O
VALOR DAS PEQUENAS COISAS (2003).
1. A imensa
maioria das espécies vegetais é de plantas com flores: de um
total de 250 mil espécies de plantas conhecidas, cerca de
220 mil são angiospermas. Para uma introdução geral ao
estudo da morfologia de frutos e sementes, ver Barroso, G.
M.; Morim, M. P.; Peixoto, A. L. & Ichaso, C. L. F. 1996.
Frutos e sementes. Viçosa, Editora da UFV; para uma
discussão sobre implicações ecológicas e evolutivas do tipo
de fruto (carnoso ou seco), ver Smith, J. F. 2001. High
species diversity in fleshy-fruited tropical understory
plants. American Naturalist 157: 646-653.
2. Isso para não
ter de mencionar que, em escala planetária, a alimentação
humana está fundamentada no consumo direto ou indireto de
grãos (sementes de leguminosas e gramíneas, em especial),
com destaque para o arroz, feijão, milho, soja e trigo.
Sobre a alimentação humana, ver Heiser, C. B., Jr. 1977.
Sementes para a civilização. SP, Companhia Editora Nacional/Edusp.
3. Estou me
referindo aqui principalmente ao desconhecimento sobre o que
ocorre com as sementes após a dispersão. Sobre a história
natural de sementes, ver Janzen, D. H. 1980. Ecologia
vegetal nos trópicos. SP, EPU & Edusp; para detalhes
técnicos, ver Harper, J. L. 1977. Population biology of
plants. London, Academic; Vasquez-Yanes, C. &
Orozco-Segovia, A. 1993. Patterns of seed longevity and
germination in the tropical rainforest. Annual Review of
Ecology and Systematics 24: 69-87; e Chambers, J. C. &
MacMahon, J. A. 1994. A day in the life of a seed: movements
and fates of seeds and their implications for natural and
managed systems. Annual Review of Ecology and Systematics
25: 263-292. Sobre o estudo da germinação, ver Ferreira, A.
G. & Borghetti, F., orgs. 2004. Germinação: do básico ao
aplicado. Porto Alegre, Artmed.
4. Um exemplo de
problema comum é a discussão sobre o "tamanho da ninhada",
embora a literatura a respeito seja amplamente dominada por
estudos zoológicos. Para um ponto de vista botânico, ver Uma
Shaanker, R.; Ganesbaiah, K. N. & Bawa, K. S. 1988. Parent-offspring
conflict, sibling rivalry, and brood size in plants. Annual
Review of Ecology and Systematics 19: 177-205.
5. Para detalhes
técnicos, ver Smith, C. C. & Fretwell, S. D. 1974. The
optimal balance between size and number of offspring.
American Naturalist 108: 499-506.
6. Talvez
pudéssemos estender esse raciocínio um pouco mais: um
aumento no tamanho da prole tende a reduzir os cuidados
dispensados a cada um dos descendentes, o que, por sua vez,
parece implicar em uma certa diluição da individualidade. Na
nossa cultura, o contrário também é verdadeiro: o filho
único tende a ser superprotegido, muitas vezes recebendo
cuidados e mimos em excesso.
7. Ver Harper,
J.; Lovell, P. H. & Moore, K. G. 1970. The shapes and sizes
of seeds. Annual Review of Ecology and Systematics 1:
327-356; sobre a filogenia do tamanho da semente, ver Moles,
A. T.; Ackerly, D. D.; Webb, C. O.; Tweddle, J. C.; Dickie,
J. B. & Westoby, M. 2005. A brief history of seed size.
Science 307: 576-580.
8. Para uma
breve revisão bibliográfica, ver Sakai, S. & Sakai, A. 1995.
Flower size-dependent variation in seed size: theory and a
test. American Naturalist 145: 918-934.
9. Ver
Howe, H. F. & Richter, W. M. 1982. Effects of seed size on
seedling size in Virola surinamensis; a within and between
tree analysis. Oecologia 53: 347-351; e Mazer, S. J. 1987.
Parental effects on seed development and seed yield in
Raphanus raphanistrum: implications for natural and sexual
selection. Evolution 41: 355-371.
10. Real, L. R. 1980. Fitness, uncertainty, and the role of
diversification in evolution and behavior. American
Naturalist 115: 623-638.