Brasil

Com Sebastião Pinheiro

Quando os Monsantos vêm cobrando

O contrabando paga royalties

A transnacional Monsanto introduz semente de soja transgênica de contrabando em todo o Brasil, com a cumplicidade das autoridades governamentais. Agora que a colheita enche os silos, a Monsanto

pede os royalties. Algo assim como que os ladrões cobraram

o IVA ao vender o que roubaram.

-Quais são as razões do conflito atual entre alguns produtores de soja do Sul brasileiro e a transnacional Monsanto?

 

-Isto é algo que já tínhamos prognosticado: algumas cooperativas de agricultores estão percebendo que Monsanto e nenhuma outra empresa têm mecanismos para arrecadar diretamente seus royalties. Por isso Monsanto necessita as estruturas existentes tais como cooperativas, associações, sindicatos de agricultores para poder fazer a cobrança. Monsanto quer receber 0,20 dólares por cada saca de soja recebida nos centros de armazenamento, dai se desconta essa porcentagem do que receberá o produtor. Quer dizer que são as organizações dos produtores as que brindam esse serviço a Monsanto. Na realidade esse mecanismo é muito diabólico, porque não se sabe com certeza que porcentagem da soja que se produz é transgénica, nem que porcentagem do conteúdo de cada saca não o é. Se é um 80% transgénica, a arrecadadora estará cobrando um 20% a mais. As cooperativas e associações não têm meios para saber quanto é transgénico e quanto não, que saca é transgénica e qual não o é. Se acaso se quiser fazer o trabalho de forma honesta, como deveria ser, estará obrigada a comprar os kits que vende a própria Monsanto para fazer as análises e saber qual é e qual não. Mas isso é um custo suplementar, um serviço em forma de equipamento que estará vendendo a Monsanto que garante desta maneira sua participação no esquema de comercialização da soja. Sem este kit para identificação não há garantias. O interesse de Monsanto não é a cobrança de mais ou menos royalties, o que quer é participar, estar dentro para ir avançando para o controle total.

 

-Qual foi o incidente que desatou a polêmica?

 

-Aconteceu que uma cooperativa do Noroeste do Rio Grande do Sul conseguiu uma ordem judicial que a exime de pagar os royalties. Se Monsanto é atualmente a única produtora dessa semente tem assegurado seu negócio, sua comercialização, mas se observamos que ela também monopoliza a venda do herbicida, pode somar a venda do químico com a da semente mais a certificação final, na realidade tem um grupo de serviços imbricados na produção de soja. Então alguns agricultores começam a dar-se conta de que neste negócio sua rentabilidade depende do clima, mas a parte de Monsanto é cada vez mais segura porque não participa na produção senão na comercialização e nos serviços agregados. Agora cobram royalty pela tecnologia, e depois será por outra e por outra coisa de maneira encadeada até chegar ao mecanismo dos grandes supermercados, onde para poder por seus produtos nas gôndolas os provedores devem pagar um “pedágio” sob forma de registro que amiúde alcança várias dezenas de milhares de dólares. Isto está criando muita polêmica agora.

 

-Com que argumentos a justiça afirma que os agricultores não devem pagar?

 

-Nunca esteve permitido que Monsanto vendesse sua tecnologia aos agricultores de Rio Grande do Sul, portanto não pode exigir cobrar sobre o que não podia comercializar. Alem disso, esta semente foi contrabandeada desde Argentina e ainda hoje é ilegal. Inclusive a lei 11.092 aprovada por Lula faz pouco tempo estabelece que para cobrar os royalties, as empresas devem mostrar uma nota fiscal da venda das sementes, e como a venda não estava autorizada até agora, mal se pode reclamar regalias. Monsanto nunca reconheceu que fez contrabando de sementes, mas todo o mundo sabe que foi assim. Quando Monsanto mandou trazer ilegalmente sementes da Argentina, desconheceu ao Estado nacional porque reconhece somente sua tecnologia, seu produto e a existência de um mercado. A nova ordem comercial mundial implica que nenhum Estado pode regular a liberdade comercial das transnacionais. O poder do lobby é tão claro que o embaixador estadunidense no Brasil se sentiu livre de aconselhar publicamente o Parlamento que não incluísse esse artigo na lei porque prejudicaria a Monsanto. Se prejudica a Monsanto prejudica o governo estadunidense.

 

-Quanto dinheiro representaria esses royalties?

 

-Há uns 70 milhões de toneladas de soja, cada saca tem 60 quilos, isso da aproximadamente uns 230 milhões de dólares.

 

Isto que está acontecendo se parece muito com o que a gente vem falando faz três ou quatro anos.

 

-Exatamente, e é o início do processo. Dentro de três anos seremos como Argentina: não existirá no Brasil nem um grão de soja não transgênica. Vamos inexoravelmente pelo mesmo caminho. Se alguém encontra hoje uma só saca de semente de soja não transgêcnica na Argentina há que declarar que é um milagre divino, nem sequer o Instituto Nacional de Tecnologia Agrária, ninguém tem nem um só grão. A pressão das transnacionais é assim, radica no domínio total, na inexistência de alternativas independentes. Essa foi a briga que estivemos provocando aqui, e a grande traição do governo do estado do Rio Grande do Sul foi fazer de conta que enfrentava o inimigo quando na realidade sempre o teve como aliado.

 

-A penetração de Monsanto no Brasil é então completa?

 

-Podemos dizer que Brasil hoje não tem espaço para ter soja que não seja transgênica, esta é a grande derrota. Por si fosse pouco, o governo chinês veio a Brasil e exigiu das autoridades locais a garantia documental de que a soja brasileira não faz dano à saúde. Quem fez o contrabando foram Monsanto e Cargill, o governo não os castigou, e agora o próprio governo assina um compromisso desse tipo. Se amanhã a soja lhe faz dano aos chineses, quem os deverá indenizar não será Monsanto senão o povo brasileiro porque este governo assumiu a responsabilidade do produto de sementes contrabandeadas. A coisa é tão incrível que a gente não consegue entender que lhes passa pela cabeça a estes senhores nesses momentos em que assinam. A sociedade deveria estar discutindo tudo isto, mas não o faz. É como se estivéssemos na Palestina e os Monsantos quisessem crucifixar Cristo, os estadunidenses do império de Bush lavaram as mãos e nós aqui estamos discutindo se usamos pregos de 10 ou de 20. E quem tenta criar consciência sobre isto somos qualificados como “ideológicos”, “comunistas retrógrados”, “socialistas perimidos”, “loucos”, e nem sequer há um só estudo dos impactos desta situação. As coisas são tão loucas que, por exemplo, Monsanto acaba de ser multada pelo governo de Indonésia já que lhe provaram que subornou um ministro da Agricultura. Longe de retroceder, Monsanto fundamentou no Congresso dos Estados Unidos que os parlamentares deveriam ajudá-la a não pagar a multa porque isso é inconveniente para todo o país. Estas discussões deveriam estar acontecendo em Davos, porque estamos falando de pirataria, de corrupção, de subornos, de contrabando. Isto é jogo sujo, mas a ética atual o admite.

 

-A oposição aos transgênicos está então debilitada.

 

-Muito debilitada porque os meios de comunicação estão do lado de quem paga a propaganda, as autoridades estão subordinadas ao capital, os rios estão privatizados para transportar soja, assim como os portos. Não há interesse em enfrentar esta biotecnologia industrial.

Não sou pessimista porque acredito que a polêmica desatada agora trará muitos questionamentos, reflexões como estas: Cargill, Monsanto e Carrefour têm interesse em que exista soja orgânica de qualidade, e em que exista soja transgênica em grande quantidade. O país que tenha condições para produzir soja orgânica ganhará muito dinheiro, ainda que obviamente igualmente estará sob o domínio das empresas mencionadas. O lamentável é que devido à estrutura da posse da terra no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, não temos a escala de Mato Grosso do Sul, onde se põem a trabalhar em linha 40 colheitadeiras em uma propriedade de 1.200.000 hectares plantadas de soja transgênica. Nós deveríamos plantar somente soja orgânica porque os imóveis são muito mais pequenos. Mas isto foi impedido e agora temos esta catástrofe. Ficaremos fora do mercado. A OMC nos diz que não entendemos bem o mundo atual, mas nós já sabemos, faz 500 anos que o entendemos.

 

 

Carlos Amorín

© Rel-UITA

24 de janeiro de 2005

 

 

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