Urge repelir a idéia de que a anistia
"vale para os dois lados". Primeiro,
pelo descalabro técnico. Depois, pela
infâmia política.
Como relator da ação em que a OAB questiona a
interpretação da Lei de Anistia, Grau
pediu vista dos pedidos argentino e
uruguaio de extradição do general Manuel
Cordero, um dos protagonistas da
iniciativa supranacional de repressão
política denominada
Operação Condor.
Caberá, então, ao STF decidir não apenas sobre a
possibilidade de julgar agentes públicos
pelos crimes contra a humanidade
praticados durante a ditadura militar
brasileira, mas também exercer a espúria
faculdade de impedir que países vizinhos
façam o mesmo em relação aos seus
acusados.
Num Brasil gravemente acometido de amnésia seletiva, o
debate encontra-se turbado pela
estapafúrdia tese do "vale para os dois
lados" -isto é, rever a anistia dos
militares implicaria necessariamente
rever a dos subversivos, ditos
"terroristas". Urge, portanto, repelir a
idéia de que a anistia vale tanto para
torturados quanto para torturadores.
Primeiro, pelo descalabro técnico. Há quem reconheça como
jurista só aquele que o defende. Porém,
o direito aqui é cristalino. O Estado
detém o monopólio da violência legítima.
Dele apropriando-se ilegitimamente e
agindo em seu nome, "autoridades"
dispuseram de recursos estatais para
promover sistematicamente a tortura, que
resultou, em numerosos casos, na
execução sumária, agravada pela
ocultação de cadáver.
Depois, o poder estatal garantiu-lhes acordo leonino, pelo
qual crimes comuns, entre eles o
estupro, foram interpretados como se
políticos fossem. Ademais, quem se opõe
à violação da ordem constitucional não é
terrorista, é resistente. O direito à
resistência é vigente no Brasil
desde os anos 1950, por força do direito
humanitário, que igualmente veda a
tortura e a execução, mesmo durante a
guerra.
Segundo, pela infâmia política. Há quem defina como ideologia
somente a dos outros. É o primeiro passo
para criminalizá-la. Ora, nunca houve
risco real de implantação de um regime
comunista no Brasil. A ampla
maioria dos caçados, torturados e
desaparecidos jamais praticou qualquer
violência. Contudo, impunes aves de
rapina não cessam de difamá-los,
argüindo que tiveram o que mereciam,
como se as vítimas estivessem a jogar o
queixo contra os punhos dos algozes.
Diante de tal (in)cultura, não
surpreende que, na atualidade, jovens
favelados já nasçam suspeitos,
esgueirando-se nas ruas diante dos
temidos agentes do Estado.
É preciso também refutar o enganoso
argumento da prescrição. Farta e unânime
jurisprudência internacional, inclusive
da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, cuja jurisdição é aceita pelo
Brasil, sustenta a imprescritibilidade
dos crimes contra a humanidade. Não se
trata de imposição, eis que o direito
internacional consiste justamente no
exercício da soberania nacional em foro
externo. Construído pelo consenso entre
as nações, aplicá-lo é tarefa
constitucional de cada Estado.
Contudo, orgulhoso por sua retumbante inserção comercial
internacional, o Brasil está cada
vez mais isolado do mundo no que tange à
memória e à justiça. Cumpridor do
direito do comércio, o país ainda
engatinha quanto à aplicação do direito
internacional dos direitos humanos.
Uma recente audiência pública da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos e o anúncio de que uma
vítima de Cordero levará o
Brasil à corte interamericana
auspiciam que a responsabilidade
internacional do Estado poderá ser
invocada em caso de omissão. Por outro
lado, por força do princípio da
jurisdição penal universal, outros
países já deflagraram ações contra
torturadores brasileiros.
Apesar de tudo, o governo brasileiro está dividido. No
julgamento da ação bravamente movida
pelo Ministério Público Federal contra o
coronel
Ustra, a atuação da Advocacia
Geral da União foi constrangedora. Os
políticos favoráveis ao julgamento levam
a pecha de revanchistas.
Seria também revanche o sentimento a mover os 400 juristas
que assinaram o manifesto em prol do
debate público nacional sobre a Lei de
Anistia, lançado em 28/8/08, no pátio da
Faculdade de Direito da USP?
E as
3.500 pessoas de 38 diferentes países
que se somaram à Campanha Internacional
pela Extradição de Cordero?
No programa para crianças que anima na rádio Justiça ("Aprendendo
Direitinho"), o ministro Eros
apresenta-se como vovô Grau.
Em breve, ele terá de contar aos
netinhos-ouvintes uma história sobre
terríveis condores, disfarçados de
cordeiros e passarinhos. Que seja bem
contada e sem páginas arrancadas, que a
trama não se passe numa ilha e que, ao
final, prevaleça a justiça.
Deisy Ventura*
Folha de São Paulo
20 de novembro de 2008