Chile:
Agrotóxicos até na sopa
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Entre outros, figuram alimentos para bebês da Nestlé
contaminados com agrotóxicos
Misturada
entre os brindes e fogos de artifício das festas de Ano Novo, a notícia
passou quase despercebida. Tudo começou em 27 de dezembro passado, quando
foi divulgada no Chile uma análise laboratorial realizada pela Liga
Ciudadana de Consumidores em cinco papinhas prontas de purê de frutas
para bebês, demonstrando que três delas continham resíduos de agrotóxicos. A
análise também detectou componentes da mesma natureza em uma sopa
instantânea de aspargos para idosos do programa "Anos Dourados" do
Ministério da Saúde e em um suco de laranja.
O estudo1,
dirigido pela Dra. Cecilia Castillo2,
mediu resíduos de pesticidas em alimentos processados contendo os seguintes
ingredientes: frutas, verduras, hortaliças e/ou cereais. As amostras foram
retiradas de um supermercado em Santiago3
e,
em seguida, foram refrigeradas e transferidas diretamente para o
laboratório, devidamente lacradas e numeradas, de acordo com um rigoroso
protocolo. Os produtos foram transportados para o Laboratório Andes
Control para a determinação de resíduos de pesticidas. O laboratório
entregou os resultados em 17 de dezembro agora.
Alarmantes
resultados
Das cinco amostras das papinhas prontas de purê de frutas estudadas, três
(de ameixa da Gerber-Nestlé, Tutti-Frutti e de
Pêssego da Nestlé)
continham
resíduos de Iprodione, um fungicida tóxico para uso agrícola. De
acordo com normas da União Europeia (UE) é considerado cancerígeno da
categoria 3, ou seja, com efeitos preocupantes sobre os seres humanos, mas
insuficientemente estudado. Causa transtornos hormonais que afetam o fígado,
as glândulas suprarrenais, os testículos, os ovários, a próstata, os rins e
os dutos seminais.
Os valores encontrados nas papinhas de ameixa e de pêssego
são de 0,04
mg/kg e 0,08 mg/kg, respectivamente, e superam os limites máximos
estabelecidos como aceitáveis para resíduos de agrotóxicos em alimentos para
crianças segundo as normas da UE. A papinha de sabor Tutti-Frutti
está no limite máximo aceitável para pesticidas em alimentos para crianças
na UE (0,01 mg/kg) e corresponde, além disso,
ao limite de detecção desta técnica.
Os resultados também mostram a presença de resíduos do inseticida para uso
agrícola Carbaril em um suco de laranja da empresa Watt`s. Sua
concentração está no limite de detecção para este pesticida (0,01 mg/kg).
Este é um material altamente tóxico que pode causar neuropatias periféricas,
degeneração dos nervos e paralisia de braços e pernas. É tóxico para os
rins, pode causar anemia aplástica e interferir na fertilidade masculina e
feminina. Tem sido associado com o desenvolvimento de câncer no cérebro em
crianças e de linfoma não-Hodgkin.
Entre os produtos analisados, está a sopa instantânea de espargos Crema
Años Dorados Espárrago, que o Ministério da Saúde entrega
como parte do Programa Nacional de Alimentação Suplementar do Idoso (PACAM,
na sigla em espanhol), na qual também foram encontrados resíduos de
agrotóxicos.
Criteriosas recomendações
Com esses dados,
a Liga
Ciudadana sugeriu às empresas
produtoras destes alimentos que contêm substâncias nocivas à saúde, que os
retirem voluntariamente do mercado. Caso contrário, esperam que o
Ministério da Saúde retire os produtos e suspenda a distribuição dos
alimentos contaminados entregues através dos seus programas de alimentação
suplementar. A Liga Ciudadana também fez um apelo urgente às
autoridades da Saúde para monitorar com mais rigor os resíduos de
pesticidas em alimentos, especialmente aqueles destinados às crianças,
gestantes e idosos.
Já Omar Pérez Santiago, secretário-executivo da
Liga
Ciudadana
e responsável pelo projeto,
conclamou
o Ministro da Saúde, Jaime Mañalich, a monitorar
urgente e sistematicamente os resíduos de agrotóxicos. Segundo Pérez,
a autoridade deve rever os limites máximos de resíduos tóxicos aceitos em
alimentos para crianças, bem como as normas para a utilização de
agrotóxicos. "A saúde da população está em primeiro lugar", afirmou,
acrescentando que "estudamos apenas uma amostra dessas papinhas e, portanto,
é dever da autoridade sanitária monitorar, visando estabelecer os níveis de
resíduos presentes e garantir a inocuidade das papinhas para as crianças”.
Uma lamentável farsa
A partir daí começou uma lamentável e reveladora farsa, que resumidos a
seguir, respeitando a ordem em que as notícias foram publicadas na imprensa.
28.12.2010
- A Subsecretária de Saúde Pública, Liliana Jadue,
afirmou que a população infantil não estará exposta aos riscos, se
consumir os alimentos onde foram encontrados vestígios de
agrotóxicos. Por sua vez, Guillermo Figueroa, chefe do
Laboratório de Microbiologia e Probióticos, do
Instituto de Nutrição e Tecnologia dos Alimentos,
desmentiu as afirmações de Jadue, dizendo que "é ilógico
pensar que é normal que os alimentos contenham pesticidas".
- Apesar de não haver no Chile nenhuma norma que regule a presença
de agrotóxicos nos alimentos processados, o Instituto de Saúde
Pública (ISP) decide colher amostras das papinhas
mencionadas.
- Em um comunicado, a Nestlé afirma que, em concordância com
a declaração da autoridade de Saúde, os três produtos
questionados estão em plena conformidade com a regulamentação
vigente, portanto está descartado que estejam infringindo as normas
sobre pesticidas, e que representem qualquer risco para a população.
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29.12.2010
- Apesar de ainda estarem analisando as amostras, María Teresa
Valenzuela, diretora do ISP, adiantou-se em dizer que as
concentrações de agrotóxicos detectadas nas papinhas prontas de purê
de frutas da Nestlé são "muito baixas", correspondentes aos
de "menor risco e com uma vida média muito curta". Não considerou
pertinente esclarecer a razão pela qual, apesar de sua vida muito
curta, o agrotóxico permanecer nas papinhas prontas.
- Guido Girardi, presidente da comissão de saúde do
Senado, dirigiu-se à Controladoria Geral da República
solicitando uma revisão do cumprimento da probidade administrativa
da Subsecretaria de Saúde Pública. Para Girardi, a
subsecretária Liliana Jadue fez uma defesa indevida da
empresa Nestlé.
- Para o presidente do Comitê Científico da Organização
Mundial da Saúde (OMS), Ricardo Uauy, é
fundamental que o Chile faça o monitoramento periódico dos
alimentos, o que hoje não acontece. Em sua opinião, a única maneira
de medir os riscos enfrentados pela população, por comer alimentos
processados, é através da criação de um registro nacional de câncer,
defeitos congênitos e outros problemas de saúde já existentes em
outros países.
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04.01.2011
- O ISP confirmou a presença de agrotóxicos nas papinhas
prontas de Ameixa e de Pêssego da Nestlé em
doses maiores do que as anteriormente detectadas pelo laboratório
Andes Control, doses consideradas muito altas
segundo a Norma Europeia. Mesmo assim, a autoridade de saúde
pediu tranquilidade aos consumidores, porque "como não existe uma
norma chilena que regule o assunto, pode-se continuar consumindo
este produto"4.
- Depois do ISP confirmar a presença de resíduos de
agrotóxicos em alimentos para bebês da Nestlé, a Liga
Ciudadana de Defensa del Consumidor entrou com um pedido junto
ao Ministério da Saúde, para que ordenassem a imediata
retirada destes produtos do mercado e começassem um trabalho urgente
para estabelecer uma rigorosa legislação que proíba a presença
destes contaminantes nos alimentos prontos. Além disso, o seu
secretário executivo, referindo-se aos comentários de María
Teresa Valenzuela, afirmou ser "uma falta de respeito
pelos consumidores e um atentado à saúde pública".
- Liliana Jadue informou que a Nestlé decidiu parar de
vender os produtos analisados, com sabor a pêssego. "É uma decisão
da Nestlé, portanto o que eles vão fazer é parar de vender o
produto", afirmou.
- Apesar dos resultados da análise realizada pelo ISP, a
Nestlé insiste em que as suas papinhas prontas não são
perigosas. Esclarece que o "Iprodione é um pesticida
catalogado no Chile como nível 4, uma classificação que agrupa os
pesticidas de menor risco".
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05.01.2010
- A Liga Ciudadana de Consumidores pediu à Nestlé para
retirar todas as variedades de alimentos para bebês onde os resíduos
de Iprodione foram encontrados. "Nós fazemos um pedido à
empresa, como na carta que enviamos ontem para o diretor da
Nestlé, na Suíça, pedindo-lhe para retirar dos
supermercados todas as papinhas prontas que possuem agrotóxicos",
disse em seu um comunicado.
- Referindo-se às palavras de María Teresa Valenzuela, a
Dr. Cecilia Castillo afirmou que "parece inadequado que uma
autoridade da saúde diga que estes produtos não são prejudiciais
para a população, criando este tipo de confusão". Ela acrescentou
que "se alguém nos garantir que essas papinhas prontas, assim como
estão, podem ser vendidas na Europa, nós ficaremos tranquilos".
- Entrando na discussão, María Elena Rozas, Coordenadora
da Rede de Ação em Pesticidas e suas Alternativas no Chile,
garantiu que o Iprodione é vendido na Europa com fase
de risco classificada como R-40, que é possível risco de efeitos
cancerígenos irreversíveis e para o sistema reprodutor. Ela
explicou, ainda, que o efeito crônico nas crianças é silencioso e
pode se apresentar oito ou dez anos após a ingestão diária. A menor
massa corporal das crianças determina que as normas sejam ainda mais
rigorosas com respeito aos alimentos para as crianças, segundo a
OMS.
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06.01.2010
-
A Liga Ciudadana se reuniu com o ministro da
Saúde, Jaime Mañalich,
o qual afirmou que, naquele mesmo dia,
solicitaria à Nestlé
que retirasse dos supermercados as papinhas prontas de ameixa.
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07.01.2010
- A Dr. Cecilia Castillo afirmou que "80 por cento da
população não entende o que lê, e eu acho que a diretora do ISP
[Maria Teresa Valenzuela] está dentro deste número. O que a
norma europeia diz é que todos os pesticidas estão em conformidade
com o valor de 0,01 miligrama por quilo de alimento, incluindo o
Iprodione, é claro. E, aliás, há uma lista que tem inclusive os
limites mais restritivos. Se ela não entende isto, precisará fazer
um curso de leitura para decodificar corretamente".
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A cereja do bolo, ou melhor, da papinha
O ponto culminante destes escandalosos acontecimentos, ao invés da cereja do
bolo, é o que poderíamos chamar de "a cereja da papinha".
No Chile, existe uma organização chamada Acción RSE. Fundada
em maio de 2000 por representantes do setor empresarial, visa a promover a
Responsabilidade Social Empresarial (RSE) nas empresas que operam
neste país, ao mesmo tempo em que é representante do Conselho Empresarial
Mundial para o Desenvolvimento Sustentável (WBCSD, na sigla em
Inglês). Acción RSE afirma em seu site que "entende a RSE como
uma visão de negócios necessária para a sustentabilidade e a competitividade
das empresas no médio e longo prazo, integrando harmoniosamente o respeito
pelos valores éticos, pelas pessoas, pela comunidade e pelo
meio ambiente"5.
Em dezembro passado, poucos dias antes de estourar o escândalo dos alimentos
com agrotóxicos, a Acción RSE renovou alguns de seus diretores,
enquanto outros foram reeleitos, entre os quais aparece Fernando Del
Solar, presidente-executivo da Nestlé Chile. Percebe-se o valor
que a Nestlé dá aos valores defendidos pela RSE, quando Del
Solar nem sequer teve o gesto de solicitar uma licença na diretoria da
Acción RSE durante o affaire das papinhas prontas com a empresa que o
próprio Del Solar preside, até que fosse esclarecida a
responsabilidade da empresa.
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Em
Parque del Plata,
Enildo Iglesias
Rel-UITA
17
de janeiro de
2011 |
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Ilustração:
Allan
McDonald,
Rel-UITA
1 Pare ler, clique
aqui.
Recomendamos a leitura.
2 Reconhecida profissional que se atuou durante 10 anos como
Chefe do Departamento de Nutrição do Ministério de Saúde.
3 A sopa de aspargos do Ministério de Saúde foi doada por um
idoso da região Metropolitana.
4 Até a data, ninguém foi sancionado pela divulgação do
absurdo argumento.
5 O destaque é nosso.
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