A FOME INFAME
Transnacionais de alimentos
lucram com aumento da fome |
A fome no mundo é a nova
grande fonte de lucros do grande capital financeiro
e os lucros aumentam na mesma proporção que a fome.
Nos últimos meses, os meses do aumento da fome, os
lucros da maior empresa de sementes e de cereais
aumentaram 83%. Ou seja, a fome de lucros da Cargill
alimenta-se da fome de milhões de seres humanos. A
análise é de Boaventura de Sousa Santos.
Há muito conhecido dos que estudam a questão alimentar, o
escândalo finalmente estalou na opinião pública: a
substituição da agricultura familiar, camponesa,
orientada para a auto-suficiência alimentar e os
mercados locais, pela grande agro-indústria,
orientada para a monocultura de produtos de
exportação (flores ou tomates), longe de resolver o
problema alimentar do mundo, agravou-o.
Tendo prometido erradicar a fome do mundo no espaço de vinte
anos, confrontamo-nos hoje com uma situação pior do
que a que existia há quarenta anos. Cerca de um
sexto da humanidade passa fome; segundo o Banco
Mundial, 33 países estão à beira de uma crise
alimentar grave; mesmo nos países mais desenvolvidos
os bancos alimentares estão a perder as suas
reservas; e voltaram as revoltas da fome que em
alguns países já causaram mortes. Entretanto, a
ajuda alimentar da ONU está hoje a comprar a 780
dólares a tonelada de alimentos que no passado mês
de março comprava a 460 dólares.
A opinião pública está a ser sistematicamente desinformada
sobre esta matéria para que se não dê conta do que
se está a passar. É que o que se está a passar é
explosivo e pode ser resumido do seguinte modo: a
fome do mundo é a nova grande fonte de lucros do
grande capital financeiro e os lucros aumentam na
mesma proporção que a fome.
A fome no mundo não é um fenômeno novo. Ficaram famosas na
Europa as revoltas da fome (com o saque dos
comerciantes e a imposição da distribuição gratuita
do pão) desde a Idade Média até ao século XIX. O que
é novo na fome do século XXI diz respeito às suas
causas e ao modo como as principais são ocultadas. A
opinião pública tem sido informada que o surto da
fome está ligado à escassez de produtos agrícolas, e
que esta se deve às más colheitas provocadas pelo
aquecimento global e às alterações climáticas; ao
aumento de consumo de cereais na Índia e na China;
ao aumento dos custos dos transportes devido à
subida do petróleo; à crescente reserva de terra
agrícola para produção dos agro-combustíveis.
Todas estas causas têm contribuído para o problema, mas não
são suficientes para explicar que o preço da
tonelada do arroz tenha triplicado desde o início de
2007. Estes aumentos especulativos, tal como os do
preço do petróleo, resultam de o capital financeiro
(bancos, fundos de pensões, fundos hedge [de alto
risco e rendimento]) ter começado a investir
fortemente nos mercados internacionais de produtos
agrícolas depois da crise do investimento no sector
imobiliário.
Em articulação com as grandes empresas que controlam o
mercado de sementes e a distribuição mundial de
cereais, o capital financeiro investe no mercado de
futuros na expectativa de que os preços continuarão
a subir, e, ao fazê-lo, reforça essa expectativa.
Quanto mais altos forem os preços, mais fome haverá
no mundo, maiores serão os lucros das empresas e os
retornos dos investimentos financeiros.
Nos últimos meses, os meses do aumento da fome, os lucros da
maior empresa de sementes e de cereais aumentaram
83%. Ou seja, a fome de lucros da
Cargill alimenta-se da fome de milhões de seres humanos.
O escândalo do enriquecimento de alguns à custa da fome e
subnutrição de milhões já não pode ser disfarçado
com as “generosas” ajudas alimentares. Tais ajudas
são uma fraude que encobre outra maior: as políticas
econômicas neoliberais que há trinta anos têm vindo
a forçar os países do terceiro mundo a deixar de
produzir os produtos agrícolas necessários para
alimentar as suas próprias populações e a
concentrar-se em produtos de exportação, com os
quais ganharão divisas que lhes permitirão importar
produtos agrícolas... dos países mais desenvolvidos.
Quem tenha dúvidas sobre esta fraude que compare a recente
“generosidade” dos EUA na ajuda alimentar com
o seu consistente voto na ONU contra o direito à
alimentação reconhecido por todos os outros países.
O terrorismo foi o primeiro grande aviso de que se não pode
impunemente continuar a destruir ou a pilhar a
riqueza de alguns países para benefício exclusivo de
um pequeno grupo de países mais poderosos. A fome e
a revolta que acarreta parece ser o segundo aviso.
Para lhes responder eficazmente será preciso pôr
termo à globalização neoliberal, tal como a
conhecemos.
O capitalismo global tem de voltar a sujeitar-se a regras que
não as que ele próprio estabelece para seu benefício.
Deve ser exigida uma moratória imediata nas
negociações sobre produtos agrícolas em curso na
Organização Mundial do Comércio. Os cidadãos têm de
começar a privilegiar os mercados locais, recusar
nos supermercados os produtos que vêm de longe,
exigir do Estado e dos municípios que criem
incentivos à produção agrícola local, exigir da
União Europeia e das agências nacionais para a
segurança alimentar que entendam que a agricultura e
a alimentação industriais não são o remédio contra a
insegurança alimentar. Bem pelo contrário.
Boaventura de Sousa Santos
Carta Maior
19
de maio de 2008