Cercado por pilhas de documentos,
revistas, jornais e livros, o fundador e
principal líder do Movimento de Justiça
e Direitos Humanos no Rio Grande do Sul,
Jair Krischke, não esconde sua
decepção com a falta de apoio do governo
federal para a abertura dos arquivos da
ditadura. Ao mesmo tempo, o militante,
que travou batalhas silenciosas para
salvar vidas entre os anos de 1964 e
1972, reconhece que o resgate desse
período está acontecendo através de
diversas iniciativas da sociedade.
Krischke
recebeu a reportagem do Jornal do
Comércio na sede da instituição que
dirige, na avenida Salgado Filho, em
Porto Alegre. Ao longo de quase duas
horas, falou sobre a sua experiência na
luta pela democracia e também analisou
temas como o indiciamento de brasileiros
na justiça italiana por crimes cometidos
durante o regime militar. Veja os
principais trechos da conversa.
-Como iniciou sua participação na luta
pelos direitos humanos?
-Foi na Legalidade, quando já se
ensaiava uma tentativa de golpe. Na
época, eu tinha 23 anos e incorporei
aquela mobilização. Depois, em 1964,
imaginávamos que era mais um dos tantos
golpes. Não se conhecia a "Doutrina da
Segurança Nacional" e nem sua força. Sob
perseguição, as pessoas tiveram que sair
do País. Muitos cruzavam a fronteira do
Rio Grande do Sul. Então um grupo de
companheiros e eu, conhecendo a região,
tratamos de facilitar a saída.
-Quem integrava esse grupo?
-Não citaria nomes. Participavam
magistrados, procuradores do Estado,
professores, engenheiros, advogados,
padres, pastores protestantes. Pessoas
que preferiram não se envolver
publicamente.
Não podemos esquecer o caso
da Escola das Américas, no
Panamá, onde o Brasil teve
um número de alunos
militares significativo.
Alguns acabaram como
instrutores e militares
golpistas. Todos
torturadores da América
Latina, invariavelmente
passaram pela escola. |
-E o Movimento de Justiça e Direitos
Humanos?
-Na vigência do AI-5, prendiam por tempo
indeterminado, sem ao menos dizer o
porquê. Os presos ficavam incomunicáveis,
não se podia falar com advogado, nem
familiar. Ainda tínhamos um cuidado
extremo para que ninguém mais caísse na
repressão. Sempre digo que nossa "agência
de viagem" nunca perdeu um passageiro.
Nesse período exilamos mais de 2 mil
pessoas, entre elas brasileiros,
uruguaios, chilenos, argentinos e
paraguaios. Em 31 de dezembro de 1978, o
AI-5 terminou. Combinamos com o grupo
que apareceríamos públicamente e
criaríamos uma entidade. Preparamos um
seminário, chamado de Justiça e Direitos
Humanos, que ocorreu em três dias. Já
tínhamos proposta de estatuto e a
submetemos. Foi aprovada e logo elegemos
a primeira diretoria, em 25 de março de
1979.
-Houve alguma resistência por parte do
governo?
-Sim. Quando fomos fazer o registro no
cartório especial, o titular não queria
inscrever a entidade por medo de se
comprometer. Pedimos, então, que negasse
por escrito: "Deixo de efetuar o
registro por colidir com o estatuto dos
partidos políticos". Com a negativa
formal, entramos com uma ação na vara
dos registros públicos e, por sentença
judicial, o Movimento de Justiça e
Direitos Humanos surgiu de direito no
dia 11 de agosto de 1980. Fizeram
questão de assinar o registro,
ressaltando a sentença judicial. Não
havia mais AI-5 e tínhamos uma diretoria
eleita com nomes significativos. Me
acompanhavam os advogados Omar Ferri,
José Mariano de Freitas Beck, um
pastor da igreja luterana, um padre
católico, participantes com grande
atividade
-O movimento ganhou visibilidade com a
denúncia do caso Lilian Celiberti e
Universindo Dias?
-O seqüestro foi no dia 12 de novembro
de 1978, às vésperas do fim do AI-5.
Sabíamos o que tinha acontecido e fomos
à luta. Isso nos deu uma visibilidade
internacional, porque foi o primeiro
caso de Operação Condor tornado
público, com condenação posterior pela
Justiça e uma indenização paga pelo
estado do Rio Grande do Sul. A
visibilidade da ação pioneira, além de
desvendar a operação, nos proporcionou
uma blindagem. Ficou muito difícil nos
atingir, já que seguidamente havia
pessoas do exterior conosco, da
França, da Holanda, da ONU.
Foi grande o mérito de nosso companheiro
Omar Ferri.
-Quando inicia essa cooperação
internacional entre os militares?
Krischke
- Sempre houve, desde o começo. Não
podemos esquecer o caso da Escola das
Américas, no Panamá, onde o
Brasil teve um número de alunos
militares significativo. Alguns acabaram
como instrutores e militares golpistas.
Todos torturadores da América Latina,
invariavelmente passaram pela escola. O
recrudescimento trouxe uma exigência
maior para tirar as pessoas do País. Em
1964, muitos saíram e discretamente
voltaram em seguida, acreditando que não
aconteceria nada, até porque jamais
foram molestados. Quando a tortura
estava sendo disseminada, o AI-5 chegou
para valer tornando a prática comum,
inclusive, o desaparecimento de pessoas.
O número de brasileiros refugiados
chegou a mais de 5 mil só no Chile.
Em junho de 1973, ocorreu o golpe no
Uruguai, país com quem estabelecemos
uma rede de estabilidade. Em setembro do
mesmo ano, foi preciso retirar pessoas
do Chile, que foi fraterno com os
brasileiros.
-Há um resgate sobre o período
ditatorial ou essa série de ações que e
pública estão acontecendo são
coincidência?
-São ações que vão acontecendo, ninguém
combinou nada, é espontâneo. Ocorre que
terminou a ditadura faz tempo e o País
tem que fazer as pazes consigo mesmo. O
Uruguai, com pouco mais de 3
milhões de habitantes, neste momento tem
dois ex-presidentes na prisão: o último
da democracia e o presidente da ditadura.
Também tem o ministro das relações
exteriores preso, assim como vários
coronéis. Na Argentina, o general
Jorge Rafel Videla teve mais uma
condenação à prisão perpétua. Outros
generais receberam sentença de 25 anos
de prisão. A redemocratização chilena
foi lenta, mas está avançando. Lá, o
general Contreiras está na prisão.
Pinochet só não está porque
morreu. O Brasil está
extremamente devagar. Um exemplo é a
decisão da justiça italiana. Não foi uma
sentença, foi um indiciamento. Faço
minhas as declarações do presidente
nacional da OAB, Cezar Britto, de
que como o Brasil não fez ao
tempo o que deveria, agora paga um mico
internacional.
Mas aquilo que está na
documentação do governo foi
pausterizado, não diz quase
nada que comprometa os
militares. São informações
de pouco valor histórico
para desvendar o que
interessa. É preciso abrir
os arquivos militares,
porque é neles que
encontraremos as informações
vitais. |
-Qual sua participação nesse episódio?
-Em 1998, familiares de ítalo-argentinos
e ítalo-uruguaios foram a Roma para
apresentar à justiça italiana a denúncia
de que seus filhos, pais e irmãos, que
tinham a cidadania italiana, foram
vítimas da Operação Condor, sendo
que dois casos ocorreram no Brasil.
Em dezembro de 1999, Giancarlo
Capaldo, um juiz da Corte Penal de
Roma, que no caso atua fazendo o papel
do Ministério Público, vai a Buenos
Aires, se instala no consulado italiano
e chama os familiares dos 25 casos para
prestar depoimento. Fui convidado a
depor por conhecer os episódios
ocorridos no Brasil. O juiz
queria saber somente sobre os casos de
ítalo-argentinos e ítalo-uruguaios. Mas,
narro o caso do aeroporto do Galeão, que
aconteceu dia 12 de março de 1980, uma
Operação Condor clássica, e outro
episódio de 26 de junho de 1980, na
fronteira entre Paso de los Libres (Argentina)
e Uruguaiana (Brasil). No
episódio do Rio de Janeiro, citei o
comandante do então I Exército, assim
como o chefe do estado maior, o diretor
da agência do SNI, o secretário
de segurança, o superintendente da
polícia federal. No caso ocorrido em
nossa fronteira com a Argentina,
citei o então comandante do III Exército,
general Antônio Bandeira; o
diretor do DCI, coronel Átila
Rohrsetzer; o principal comandante
do seqüestro dos uruguaios em Porto
Alegre, o diretor do Dops, delegado
Marco Aurélio da Silva Reis.
Elaborei um informe ao juiz italiano,
que os indiciou como responsáveis, em
decorrência da cadeia de comando, das
repressões que vitimaram a dois
ítalo-argentinos. Nesse momento, há uma
ordem internacional de captura. Se essas
pessoas arroladas saírem do Brasil
serão presas e levadas a Roma. Não tenho
dúvida de que a justiça italiana
condenará, até na ausência, pois em
abril do ano passado em um processo
semelhante, contra dois oficiais
argentinos resultou em condenação
perpétua.
-Por que o Brasil não abre os
documentos?
-Imaginava que o presidente Lula,
um homem comprometido na luta contra a
ditadura, seria o nosso companheiro
número um, por ter sido também uma
vítima do sistema repressor. No entanto,
ele não tem auxiliado. Ao chegar o
pedido formal da justiça italiana, a
justiça brasileira terá de enfrentar
pela primeira vez a questão do crime de
lesa-humanidade
-Por que essa falta de interesse em
investigar o assunto?
-Mais que desinteresse, é desídia, o que
é mais grave! E tem outro assunto
esquecido: a Guerrilha do Araguaia. Logo
que o presidente assumiu seu primeiro
mandato, houve uma decisão judicial
mandando abrir os arquivos do Araguaia.
A ação chega ao desfecho de uma sentença
judicial mandando abrir a documentação.
Entretanto, o presidente Lula
mandou a Advocacia-geral da União
recorrer da sentença. Perdeu o recurso
no Tribunal Regional Federal e entrou
com outro recurso no STJ, onde
também perdeu. Agora estamos frente a
uma decisão do Supremo, que é
irrecorrível. Então começa a se falar
que os documentos foram queimados. Mas,
existe uma regra internacional dos
serviços de inteligência de que
informação não se destrói. Temos uma
experiência concreta no Rio Grande do
Sul, quando com um grande estardalhaço o
governo do Estado, tendo à frente o
governador Amaral de Souza,
e sendo secretário de Segurança o
coronel João Osvaldo Leivas Job,
promoveu a queima dos documentos do Dops/RS.
Foi testemunhado pela imprensa, filmado,
fotografado, e, um ano e meio depois, os
documentos queimados reaparecem, com
anotações posteriores à queima.
-Por que o senhor critica a atuação do
presidente Lula em relação às famílias
de desaparecidos?
-O presidente Lula nunca recebeu
os familiares de mortos desaparecidos.
Ele andou no Peru e recebeu os
familiares de desaparecidos de lá. No
ano passado esteve presente ao
lançamento do livro "Direito à Memória e
à Verdade", que relata os casos
analisados. Isso não é suficiente. Seria
preciso uma audiência específica,
oficial, para que essas pessoas possam
apresentar as suas reivindicações. No
mesmo período, José Genuíno, até
então, presidente nacional do PT, foi
agraciado com a medalha do Pacificador.
Se alguém tiver dúvidas sobre quem foi
ou não torturador no Brasil, há
uma fórmula fácil para se descobrir: é
só verificar se a pessoa possui a
medalha do Pacificador. Se tiver,
certamente se trata de um torturador.
Todas as bestas-feras brasileiras têm a
medalha do Pacificador, inclusive dois
coronéis que destruíram a guerrilha do
Araguaia, como o coronel Sebastião
Rodrigues de Moura, o famoso "Major
Curió". Ainda sim, Genuíno aceita a
medalha do Pacificador sendo presidente
nacional do PT. Relato esse cenário para
dizer que tudo indica que houve acordo
do governo Lula com os militares
para não abrir os arquivos. Refiro-me a
atos concretos, como mandar recorrer de
decisão judicial.
Essa entrevista do general é
uma ameaça. Se sou o Lula
demito o general Félix
porque a sua postura é uma
legítima canalhice.
Declarações como a dele não
são argumentos. O Lula
cumpre seu segundo mandato,
muda uma série de ministros,
contudo, o general Jorge
Félix permanece. |
-E a ministra Dilma Rousseff, que chorou
na homenagem do Senado a mulheres
perseguidas pela ditadura, não está
ajudando?
-A ministra Dilma ultimamente
chora em momentos como esses. Em 31 de
dezembro de 2005, o presidente Lula
mandou para o Arquivo Nacional todos os
documentos do SNI e a ministra
Dilma chorou. Me comoveu. Mas aquilo
que está na documentação do governo foi
pausterizado, não diz quase nada que
comprometa os militares. São informações
de pouco valor histórico para desvendar
o que interessa. É preciso abrir os
arquivos militares, porque é neles que
encontraremos as informações vitais.
-Esse acordo do governo Lula com os
militares seria por medo de reações?
-O general Félix disse em uma
entrevista que não convém abrir os
arquivos, porque apareceriam fatos
bastante desagradáveis. Maridos que
traíam suas mulheres com "companheiros"!
Como no caso em que exilados brasileiros,
quando do golpe no Chile,
ingressaram com seus "namorados", na
embaixada da Argentina em
Santiago, deixando do lado de fora, suas
esposas. Essa entrevista do general é
uma ameaça. Se sou o Lula demito
o general Félix porque a sua
postura é uma legítima canalhice.
Declarações como a dele não são
argumentos. O Lula cumpre seu
segundo mandato, muda uma série de
ministros, contudo, o general Jorge
Félix permanece. Se quisermos fazer
as pazes com a história, teremos que
enfrentar tudo. Mesmo que eu não saiba
por onde passa o acordo, os dados que
forneço servem ao menos para enfatizar
que algo existe.
-O fato de o governo Lula ser o que mais
liberou indenizações não é um sinal de
boa vontade?
-A lei que trata da matéria é do final
do governo Fernando Henrique.
Este contorno de facilitação não pode
ser crédito de um ou outro governo. É
preciso pensar que em um País com
carências imensas em saúde pública ou
educação fundamental, não se pode jogar
dinheiro fora. Há indenizações que
realmente são ofensas, pagamentos
mensais que chegam a R$ 19 mil. Quem
ganha isso por direito no Brasil?
Não falo de mérito...
-Outro tema do período da ditadura que
ressurgiu é a morte do presidente Jango.
Qual sua avaliação?
-Não havia, e de uma certa forma ainda
não há, o interesse em mexer com o que
foi colocado para baixo do tapete. Na
verdade, a investigação sobre a morte do
presidente Jango nunca deveria
ter sido interrompida. Os militares
estavam preocupados. Jango queria
muito voltar ao País para reorganizar a
oposição. Isso ocorre também em relação
ao Uruguai, no Chile e na
Bolívia. Um a um os principais
líderes latino-americanos são mortos,
entre 1976 e 1977. Em relação ao
Uruguai, temos os assassinatos do
senador Zelmar Michelini e do
deputado Hector Gutierrez Ruíz,
em maio de 1976, em Buenos Aires Também
em Buenos Aires foi assassinado o
general Juan José Torres,
presidente da Bolívia, deposto
por um golpe militar. Em relação ao
Chile, temos o assassinato de
Orlando Letellier. No Brasil,
ocorrem as mortes de Juscelino e
Lacerda, ambas em circunstâncias
até hoje duvidosas. É tudo muito
suspeito!
Jornal do Comércio
26 de março de 2008