INTRODUÇÃO
A Confederação Nacional dos
Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura – CONTAG,
é uma entidade sindical nacional que, junto com 27
Federações Estaduais e mais de 3.700 Sindicatos de
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de todo o país,
formam o Movimento Sindical de Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais – MSTTR. Na base de representação
da CONTAG, encontram-se mais de 25 milhões de
trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra,
agricultores familiares, meeiros, parceiros,
arrendatários e assalariados rurais. O MSTTR, ao longo
de sua história, vem atuando na construção de
políticas e ações amplas, que visam atender às
especificidades demandadas por homens, mulheres,
idosos, jovens e crianças de todas as raças, credos e
opção política, que vivem e trabalham no meio rural.
A luta pela reforma agrária, pela
garantia dos direitos humanos e contra a violência e
impunidade no campo, está presente no dia-a dia do
MSTTR. Portanto, é muito importante a proposta da UITA
de construir esta Campanha, buscando o envolvimento e
a solidariedade
internacionais contra a grave situação de violência a
que estão expostos os trabalhadores e trabalhadoras
rurais brasileiros e aqueles que os apóiam.
É fundamental somar os esforços das
entidades internacionais às lutas cotidianas que os
trabalhadores e trabalhadoras rurais
desenvolvem em todo o Brasil. É importante, também,
que esta campanha se some à
Campanha internacional e nacional
“Reforma agrária: sustentabilidade ambiental e
direitos humanos”
que está sendo desenvolvida pelo Fórum
pela Reforma Agrária e Justiça no Campo, que reúne
várias entidades e organizações, inclusive a CONTAG.
Neste trabalho, procuramos demonstrar
as raízes e as características da violência promovida
contra trabalhadores e trabalhadoras rurais
brasileiros e suas lideranças, visando subsidiar as
discussões com as afiliadas à UITA e demais parceiros,
buscando ampliar os apoios e solidariedade à luta pela
terra no Brasil e pelo combate à violência e
impunidade no campo.
1. AS PRINCIPAIS RAZÕES
DA VIOLÊNCIA NO CAMPO
a) A
concentração da terra
A violência no campo no Brasil está
diretamente vinculada à concentração da terra e do
poder. A concentração fundiária no Brasil é uma das
maiores do mundo. Menos de 50 mil proprietários rurais
possuem áreas superiores a mil hectares e controlam
50% das terras cadastradas. Cerca de 1% dos
proprietários detém 46% de todas as terras. Segundo
dados do INCRA, existem cerca de 100 milhões de
hectares de terras ociosas no Brasil. Ao mesmo tempo,
mais de quatro milhões e meio de famílias de
trabalhadores e trabalhadoras rurais não possuem terra
e vivem num estado de pobreza extrema.
A concentração de terra está
diretamente relacionada como a concentração do poder.
Os poucos donos das terras, que sempre receberam
privilégios e exerceram influência sobre as instâncias
do Estado brasileiro, além de se sentirem donos da
natureza e com isso explorá-la até à exaustão, também
se comportam como se fossem donos das pessoas,
especialmente as mais pobres. Em nome de seus
interesses pessoais, financeiros e políticos, os
latifundiários exploram, escravizam, ameaçam, torturam
e matam aqueles e aquelas que ousam lutar contra seus
privilégios.
A concentração fundiária brasileira,
que tem sua origem na colonização feita pelos
Portugueses, foi sendo aprimorada ao longo dos
séculos, apoiada pelas políticas governamentais que
sempre privilegiaram o latifúndio em detrimento da
realização da reforma agrária ou da agricultura
familiar. Atualmente, o modelo agrícola embasado no
agronegócio monocultor e voltado para a exportação, se
expande rapidamente. Fazendeiros, madeireiros, grandes
plantadores da soja, de algodão, cana de açúcar, etc.,
em nome da modernidade e da produtividade, avançam
sobre terras públicas, áreas indígenas, áreas ocupados
por populações tradicionais e posseiros, ribeirinhos e
outros. No afã de ampliar suas terras, acirram os
conflitos no campo e produzem a violência das mais
variadas formas como a super exploração no trabalho e
o trabalho escravo, a grilagem das terras, os crimes
ambientais, os espancamentos, seqüestros, ameaças e os
assassinatos.
b) A impunidade
A outra
grande razão para a violência no campo no Brasil é,
sem dúvida a impunidade. A impunidade é uma importante
cúmplice da violência e traz para a cena, além da não
penalização dos responsáveis pelos crimes, uma
situação de atemorização da população e de impotência
das autoridades.
Para se ter uma idéia da gravidade da
situação de impunidade no campo, basta que se analise
os dados registrados pela CPT - Comissão Pastoral da
Terra, constatando que durante os últimos 20 anos
foram assassinados mais de 1.385 trabalhadores rurais,
lideranças e ativistas ligados aos movimentos sociais
de luta pela terra e pela reforma agrária no Brasil.
Destes casos, somente 77 foram julgados, com a
condenação de apenas 15 mandantes e 65 executores. 523
destes assassinatos aconteceram no estado do Pará e
lá, apenas 10 casos foram a julgamento, com a
condenação de 5 mandantes e 8 executores. Mesmo assim,
todos os executores condenados fugiram da cadeia. Três
fazendeiros, condenados como mandantes de assassinatos
de sindicalistas estão em liberdade, pois um cumpre
sua pena em prisão domiciliar e os outros dois
aguardam julgamento de recursos em liberdade há dois
anos, devido à parcialidade e morosidade da Justiça.
O massacre de Eldorado de Carajás,
(onde 17 trabalhadores sem terra foram assassinados
pela polícia), é um exemplo de como a Justiça age no
tratamento dos crimes contra os trabalhadores e
trabalhadoras rurais. Dos 154 acusados levados ao
banco dos réus, apenas dois comandantes da tropa foram
condenados.
Outro caso emblemático da impunidade é
o do assassinato de Margarida Maria Alves, presidente
do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa
Grande, no Estado do Paraíba. Ela foi assassinada por
defender os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras
das plantações de cana de açúcar da região. Após mais
de 20 anos, com o julgamento adiado por 06 vezes, o
tribunal absolveu o fazendeiro Zito Buarque, acusado
pelo assassinato.
Ainda como reflexo da situação de
impunidade, existem atualmente 145 pessoas ameaçadas
de morte, segundo dados parciais da CPT. São
trabalhadores rurais sem terra, acampados, assentados
e agricultores familiares, dirigentes sindicais,
funcionários públicos, agentes pastorais, religiosos,
índios, quilombolas entre outros. No estado do Pará,
há uma “Lista dos marcados para morrer”, onde
constam nomes de dirigentes sindicais, políticos e
lideranças locais, em uma lista elaborada pelos
fazendeiros da região para serem eliminados pelos
jagunços. O mais triste é que, apesar das inúmeras
denúncias feitas às autoridades municipais, estaduais
e federais, as ameaças estão sendo cumpridas e a
lista, só não diminui porque no lugar dos
assassinados, novas vítimas em potencial são incluídas
na relação, sem que os culpados sejam punidos pelos
seus crimes.
2. AS
PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DA VIOLÊNCIA NO CAMPO
a) É
seletiva
Apesar da violência dos latifundiários
vitimar qualquer um que se oponha a seus interesses,
ela atinge, principalmente, às pessoas que tenham
poder de influência e de formação de opinião sobre as
comunidades. Por isso, dizemos que ela é
seletiva, pois suas principais vítimas são os
dirigentes sindicais, lideranças sociais, agentes
pastorais e comunitários, religiosos, parlamentares,
advogados, etc.
É importante destacar que a organização
para os crimes envolve uma tabela de preços para as
vítimas. Quanto mais influente for a liderança a ser
eliminada, mais alto é o valor a ser pago pelo seu
assassinato, mesmo que estes sejam irrisórios.
b) É Institucional
Uma outra característica da violência
no campo é a sua institucionalidade. Quase sempre, as
ações de repressão às lutas que geram as agressões e
desrespeito aos direitos humanos são apoiadas pelos
organismos do Estado, em especial as polícias. A
interpretação das leis e as determinações do poder
judiciário, colocando o direito à propriedade acima do
direito à vida e à sobrevivência, na maioria das
vezes, corrobora e sustenta as ações dos demais
poderes, que não exitam em colocar o aparato público a
favor dos latifundiários e contra os trabalhadores e
trabalhadoras rurais. Para exemplificar, registra-se
que nos anos de 2003 e 2004, mais de 70 mil famílias
sem terra foram vítimas de despejos, ordenados pelo
Poder Judiciário e executados violentamente pela
polícia militar.
c) É organizada
Apesar da ocorrência de fatos isolados,
a violência no campo está ligada às organizações
formais ou informais dos latifundiários. São criados
consórcios, associações, união de ruralistas, etc.,
como formas de se estabelecer “redes” de
financiamento para os assassinatos e de proteção para
as propriedades rurais contra a ação dos trabalhadores
e trabalhadoras rurais, especialmente os sem terra.
Estas organizações se valem da contratação e
manutenção de milícias privadas e de advogados e
promovem a compra de armas, dentre outras ações
ilegais. É comum, também, a criação e “empresas de
seguranças”, que na verdade são empresas de fachada
para dar um caráter de legalidade à contratação de
pistoleiros para as fazendas.
3. A VIOLÊNCIA NO ESTADO DO PARÁ
O Estado do Pará tem
sido reconhecido nacional e internacionalmente como
uma das regiões de maiores índices de violação dos
direitos humanos do País. Na origem desse processo
está a conflituosa ocupação da terra, especialmente
das regiões sul e sudeste daquele estado. A ocupação
da região Amazônica foi inicialmente impulsionada
pelas políticas dos governos militares, que
estimularam a exploração de suas riquezas minerais e
naturais pelos grandes grupos econômicos e pecuaristas
do sul e sudeste do Brasil. Para incentivar este
processo, o governo projetou a expansão da fronteira
agrícola através das licitações de grandes áreas
públicas, com a formação de grandes fazendas
financiadas com recursos do Estado. Além destes
projetos incentivou, implementou e financiou várias
outras ações estratégicas para a ocupação da Amazônia,
a exemplo da rodovia Transamazônica, da hidrelétrica
de Tucuruí e do Projeto Ferro Carajás.
O outro lado da ocupação da região
Amazônica se deu pela migração de um contingente de
trabalhadores sem terra, incentivados por uma ampla
campanha nacional que prometia terra para morada e
produção. Com isso, uma considerável população pobre
migrou para a região. Entretanto, se depararam com a
concentração de terras pelos grandes grupos econômicos
e pecuaristas, com a falta de infra–estrutura e de
atendimento básico, desemprego, malária e muitas
outras mazelas. Como alternativas de sobrevivência e
de produção esta população partiu para a ocupação de
terras públicas ou de latifúndios improdutivos ou para
os garimpos. Muitos ainda foram levados para o
interior das grandes fazendas onde foram submetidos ao
trabalho escravo.
Atualmente, o agronegócio,
especialmente movido pela produção de soja e pecuária
de corte e pela a valorização dos preços das terras,
tem avançado rapidamente sobre a região, considerada a
maior fronteira de ocupação agropecuária e
extrativista do país.Com a tradicional grilagem
de terras públicas, ocupam territórios inteiros,
independentemente de estarem ocupadas por posseiros,
índios, ribeirinhos ou outros. Promovem a extração
ilegal da madeira e transformam estas áreas em
lavouras ou pastagens, com enormes custos ambientais e
o acirramento da violência contra os trabalhadores e
trabalhadoras rurais.
Neste contexto, a disputa pela posse
das terras e pelos modelos de desenvolvimento a serem
implementados e consolidados na região, fez com que,
no início de 2005, ocorresse um agravamento da
violência no campo. Assim, no dia 12 de fevereiro de
2005, a Irmã Dorothy Stang, agente da CPT que
trabalhava há 30 anos na região foi brutalmente
assassinada. A partir de então, evidenciou-se a
situação de violência na região e especialmente no
município de Anapú, que está localizado na região
centro do Estado do Pará, próximo à chamado “Terra do
Meio”, onde 90% do território é considerado de terras
devolutas, pertencentes à União ou ao Estado do Pará.
Irmã Dorothy já havia sofrido várias
ameaças de morte e feito várias denúncias às
autoridades locais e junto ao Governo Federal sobre os
conflitos e o crime organizado dos latifundiários e
grileiros da região e sobre o envolvimento de
autoridades locais e regionais e das Polícias Civil e
Militar do Governo Estadual. O crime foi executado por
dois pistoleiros, a mando de fazendeiros contrários à
implantação dos PDS – Projeto de Desenvolvimento
Sustentável, que a missionária ajudava a implementar
na região.
Três
dias depois, em 15 de fevereiro de 2005, no município
de Parauapebas, mais um assassinato motivado por
conflitos agrários foi denunciado. Daniel Soares de
Souza, militante sindical e presidente da Associação
do Projeto de Assentamento Carlos Fonseca, foi morto
com seis tiros a queima roupa em uma emboscada,
aumentando os números da violência no campo
brasileiro.
Estes dois fatos registrados em menos de uma semana
revelam a constância dos assassinatos de trabalhadores
e trabalhadoras rurais e lideranças no estado do Pará.
Entretanto, muitos casos não são, sequer, registrados.
Apenas os casos mais evidentes e emblemáticos recebem
repercussão nacional e internacional e ajudam a
desnudar a realidade local e forçam as autoridades a
tomarem providências, a exemplo do assassinato da Irmã
Dorothy.
AS AÇÕES DESENCADEADAS NA REGIÃO
O caso
do assassinato da missionária Dorothy foi um dos casos
com grande repercussão na mídia e que gerou fortes
pressões nacionais e internacionais. Exigiu do governo
o anuncio de uma série de medidas e um forte
investimento para que acontecessem as prisões dos
acusados. O governo enviou para a região um
contingente com 2.000 soldados do Exército e anunciou
uma operação conjunta de órgãos federais envolvendo o
Incra, Ibama, Delegacia Regional do Trabalho -DRT,
Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Forças
Armadas.
Entre os compromisso assumidos, está o
de intensificar o programa de reforma agrária,
ampliando as atividades de regularização fundiária, a
retomada das áreas da União ilegalmente ocupadas, o
georeferenciamento do território e vistorias de áreas,
inclusive com acompanhamento dos técnicos do Ibama e
da DRT para verificar a existência de crime ambiental
e trabalho escravo. Além disso, governo anunciou a
interdição de 8,2 milhões de hectares de florestas em
terras da União junto à Rodovia BR-163
(Cuiabá–Santarém), a criação de duas novas áreas de
preservação ambiental e de três novas Unidades de
Conservação em frentes de expansão da fronteira
agrícola.
Estas medidas, sem
dúvida, são importantes, mas não podem ser ocasionais
e isoladas. A solução dos problemas e da violência
contra os trabalhadores e trabalhadoras rurais exige
ações permanentes dos Governos, pela realização da
Reforma Agrária e contra a impunidade e o crime
organizado. Devem envolver as instituições do Estado,
as polícias, os governos estaduais e o judiciário
contra todos aqueles que insistem em desafiar e
enfrentar as leis, o Estado de direito e as
autoridades constituídas.
CONCLUSÃO
A principal exigência para se conter a
violência e a violação aos direitos humanos no campo é
a realização de uma Reforma Agrária ampla e massiva.
Esta política precisa ser, efetivamente, uma ação
prioritária do governo, garantindo recursos humanos e
financeiros e qualificando a legislação e os
instrumentos administrativos para assegurar a
agilidade e eficiência das ações. Só com a
democratização da terra será possível democratizar o
poder e por um fim à truculência, intolerância e
ganância dos latifundiários que colocam o direito à
terra acima do direito à vida e à cidadania.
É preciso que, de imediato, sejam
tomadas medidas efetivas como a conclusão dos
processos de desapropriação, o impedimento dos
despejos ilegais e arbitrários, a retomada das terras
públicas invadidas por grileiros destinando-as aos
projetos de assentamento, a ampliação dos recursos
para a erradicação do trabalho escravo e a manutenção
do Cadastro de Empregadores, conhecido como “Lista
Suja”, além da suspensão dos planos irregulares de
manejo florestal. Também é indispensável que o
Congresso Nacional cumpra o artigo 51 das Disposições
Constitucionais Transitórias determinando a revisão
das doações, vendas e concessões de terras públicas no
país e que coloque em pauta para aprovação imediata a
proposta de Emenda Constitucional que confisca as
terras onde se explora o trabalho escravo.
É urgente, também, que o poder
judiciário priorize o julgamento dos crimes contra os
trabalhadores e trabalhadoras rurais e de outras
lideranças no campo.Para por um fim à impunidade é
fundamental concluir com rapidez os inquéritos de
todos os casos pendentes, levar a julgamento e manter
presos todos os culpados pelas atrocidades cometidas
contra os trabalhadores e trabalhadoras rurais de todo
o Brasil.
27
de abril de 2005