Maria Oneide Costa
Lima conta como venceu o medo e está
engajada no combate
ao trabalho escravo para dar continuidade à luta do
marido "Gringo", líder sindicalista de São Geraldo
do Araguaia (PA) assassinado em 1980
O sindicalista Raimundo Ferreira Lima, mais conhecido
como "Gringo", foi assassinado em 28 de maio
de 1980. Alguns meses antes, ele havia sido eleito
presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de
Conceição do Araguaia (PA), no sul do estado. Sua
chapa desbancou Bertoldo Lira, candidato da
situação, mais próximo da polícia e dos poderosos da
localidade.
Gringo
era agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT),
ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
e lutava pela reforma agrária na região.
Há 28 anos, no caminho de volta de um compromisso em São
Paulo (SP), Gringo parou para pernoitar em
Araguaína, que hoje pertence ao Tocantins. No dia
seguinte, retornaria a São Geraldo do Araguaia, na
época um distrito do município de Conceição do
Araguaia (PA).
O intervalo para repouso, todavia, acabou se tornando eterno.
Gringo foi seqüestrado do hotel em que dormia
e levado para uma estrada fora da cidade, onde foi
assassinado a tiros. Um dia antes, o padre
Ricardo Rezende Figueira, então diácono,
declarara em entrevista coletiva em Brasília (DF)
que havia seis ameaçados de morte na região. Um
deles era Gringo.
Maria Oneide Costa Lima,
mulher de Gringo, tinha 29 anos quando ficou viúva.
"Eu não sabia nem o que fazer, não tinha nenhum grau
de estudos para conseguir um emprego, com seis
filhos nas costas pra criar", recorda.
Hoje, Maria Oneide é diretora de uma escola pública
que leva o nome do homem com quem foi casada,
"Raimundo Ferreira Lima", em São Geraldo do Araguaia
(PA).
Ela nunca deixou a região, mesmo após a morte do marido.
Começou a trabalhar com os padres franceses
Aristide Camio e François Gouriou, da
CPT, e se envolveu na luta por justiça no campo.
Foi presa em seu domicílio em 1982, quando os padres
também foram encarcerados sob acusação de
subversivos e terroristas. Alguns anos depois,
Oneide foi ameaçada de morte e chegou até a
pedir proteção na capital federal, no período em que
era supervisora de escolas da prefeitura. A ameaça
vinha de Neif Murad, fazendeiro acusado de
ser o principal mandante da morte de seu marido.
A história da
morte de Gringo é semelhante ao que aconteceu com a
missionária Dorothy Stang, assassinada em fevereiro
de 2005. Nos dois casos, um grupo de "interessados" na execução
montou um "consórcio" para pagar pistoleiros que
acabaram com as vidas do sindicalista de São Geraldo
e da irmã norte-americana em Anapu (PA). No caso do
marido de Oneide, prefeitos da região, o
então deputado estadual - e hoje deputado federal -
Giovanni Queiroz (PDT-PA), além de Neif
Murad e outros fazendeiros locais foram
apontados pela imprensa como supostos mandantes do
crime.
A notícia do assassinato de Gringo e da formação do
consórcio criminosos saiu em vários jornais como
paraense O Liberal, além d´O Estado de S.
Paulo, que tinha o jornalista Lúcio Flávio
Pinto como correspondente no Pará. "Havia a
notícia da reunião [dos mandantes que montaram o
consórcio], mas ninguém falou ´eu vi´", lembra o
editor do
Jornal Pessoal.
Até hoje não houve julgamento para quem matou Raimundo
Ferreira Lima. "O processo foi engavetado, nunca
foi levado para frente, nunca foi feito nada para
que o verdadeiro culpado pagasse", diz a viúva
Oneide. O processo sobre o caso chegou a ser
instaurado na Justiça de Conceição do Araguaia, mas
acabou engavetado por falta de provas. "Não
conseguiram provas. Naquela época era muito precária
a investigação", analisa o jornalista Lúcio
Flávio.
Durante o Festival da Abolição, Maria Oneide conversou
com a Repórter Brasil sobre a sua trajetória
de vida e a importância da luta pela terra, que
movia Gringo e que continua movendo a
dedicada diretora da escola que carrega o nome do
líder sindicalista que deixou a sua marca na
história.
-O clima de impunidade ainda permanece na região?
-Permanece. E muito. Agora tem o caso da irmã
Dorothy [Stang, assassinada em 2005]. O
mandante [Vitalmiro Bastos Moura, o "Bida"] é
julgado, pega 30 anos de prisão e de repente vem
outro julgamento e ele sai livre. Ainda existem
casos de impunidade, que geram outros crimes...
-Mas a senhora não acha que não melhorou? A repercussão da
absolvição do Bida, por exemplo, foi negativa...
-Melhorou. São Geraldo era um lugar do qual ninguém
falava. Em São Geraldo houve a Guerrilha [do
Araguaia, contra a repressão da ditadura militar],
depois houve a prisão de missionários que foram para
lá, como o padre Aristide [Camio] e o
padre Chico [François Gouriou]...
Quando a gente era professora, ninguém vinha falar
da guerrilha. Vinha gente lá de São Paulo pesquisar
em São Geraldo coisas que os nossos alunos nem
sabiam.
Era um absurdo falar em "guerrilha". Hoje o pessoal já começa
a dizer "eu vi", "eu estava presente". Mas antes,
ninguém falava. Não levantava nem a voz. Se chegasse
um político dizendo "tem que votar em mim", a pessoa
votava porque tinha medo de que soubessem em quem
ela tinha votado. Hoje melhorou com relação a isso.
As pessoas já sabem exigir, criticar, falar.
-Os acusados pela morte do Gringo foram a julgamento?
-Nunca aconteceu. Acho que o processo até acabou. Por
cinco ou seis anos depois da morte dele, nós
marchamos para Araguaína [onde o sindicalista foi
assassinado]. O processo foi engavetado, nunca foi
levado para frente. Nunca foi feito nada para que os
culpados pagassem pelo crime.
-E se o inquérito fosse reaberto como no caso da
morte do padre Josimo [Morais Tavares, assassinado
em 1986]?
-Ah, a minha vontade era de ver esse julgamento, sim.
Pelo menos para ver quem fez no banco do réu. Mas é
difícil, né! Depois de tanto tempo. Quem sabe...
Alguns mandantes ainda estão aí. O [principal]
mandante já morreu, em 1984. Os lavradores da região
mataram, não para vingar a morte do Gringo,
mas por causa de conflitos envolvendo as mesmas
terras.
-Qual é a história dessas terras?
-Eram terras devolutas e o fazendeiro Neif Murad
queria tomá-las dos posseiros. E tinha posseiro
morando com mais de dez anos naquela terra... E por
isso eles mataram o Gringo. A gente soube
depois que a pessoa que matou [o Gringo]
também morreu, mas foi por causa de outro crime
cometido em Formoso do Araguaia [município do sul do
Tocantins]. A família do rapaz morto [nesse outro
caso] matou ele [pistoleiro].
-Também houve um consórcio de mandantes no caso do
Gringo?
-Isso. Antes era mais camuflado isso de contratar pistoleiro.
Hoje é mais assim, cara limpa. Inclusive até o
prefeito de Araguaína da época estava envolvido
[como suspeito, pela imprensa], Joaquim [de
Lima] Quinta era o nome dele, se não me engano.
Também o deputado [estadual] na época, Giovanni
Queiroz [que hoje é deputado federal pelo
PDT-PA]. Mais ou menos seis pessoas estavam
envolvidas [como mandantes]. Eu ainda tenho o jornal
da época.
-A senhora não saiu de São Geraldo do Araguaia
depois da morte do Gringo. Foi difícil ficar no
mesmo lugar, não foi?
-Eu não sabia nem o que fazer, não tinha nenhum grau de
estudos para conseguir um emprego, com seis filhos
nas costas pra criar. Na época, o padre Chico
e o padre Aristides tinham acabado de chegar
a São Geraldo. Como o Gringo trabalhava na
Pastoral da Igreja [Católica], eles me perguntaram
se eu queria trabalhar na Pastoral também e eu
aceitei. Quando comecei a trabalhar com eles, eu me
senti outra pessoa, porque ia para a zona rural com
eles. A gente se envolvia em muitas questões de
terra. Terminei o segundo grau e depois o curso
universitário em História e criei meus filhos. Mas
toda a vida foi esse sentimento assim de lutar,
sabe? Os padres [Aristide e François]
foram presos [em 1982], eu fui presa também, prisão
domiciliar.
-Havia perseguição...
-A Polícia Federal perseguia... Eles inclusive invadiram a
minha casa e pegaram uma foto minha e da minha
família. Fizeram uma montagem, dizendo que eu estava
no Rio de Janeiro (RJ), com o padre Aristide,
na praia, gastando o dinheiro dos pobres. Jogaram
panfletos em toda região, de avião. Quando cheguei
na zona rural, o pessoal estava com o papelzinho
pregado na parede. Eles não sabiam ler, né... Diziam
"Olha dona Oneide, olha aqui a senhora!", e
eu contava a história e ia rasgando [os panfletos
com a fotomontagem].
-A senhora não teve medo?
-Tive medo por causa dos meus filhos, mas só uns dez anos
depois, quando chegaram os [meus] 40 anos... Quando
eles eram pequenos eu não tinha medo. Eu ia,
participava, falava, dava nome aos bois. E depois eu
fiquei com medo. [Os filhos] ficaram sem pai, e
agora iam ficar sem mãe?Viúva de "Gringo"
venceu o medo e voltou à ativa
-Principalmente depois do que aconteceu com a família
Canuto...
-A gente era vizinho. Qualquer coisa que acontecia lá a
gente ficava sabendo. Rio Maria fica a uns 200 km. [Esse
caso dos Canuto] foi no final dos anos 1980. A
partir daí eu fiquei com medo... Cansei de dormir
com lavrador em minha casa, vigiando. Ficava em casa
com medo porque o pistoleiro dizia que ia me matar.
Eu já tinha saído da Paróquia e trabalhava na
prefeitura como supervisora de escola e tinha que ir
pra mata [zona rural]...
-E por que as ameaças?
-Sempre por causa da luta pela terra. Eu participava das
reuniões, cuidava das coisas dos lavradores. O
fazendeiro Neif Murad, justamente o que
mandou matar meu marido, disse que da minha família
não ia sobrar nem as galinhas. Falou lá pro pessoal
e me contaram. Aí eu fui pedir proteção em Brasília
(DF) porque me senti acuada. O ministro da Justiça
da época me encaminhou para Belém. O secretário de
segurança pública do estado fez uma audiência comigo
e com ele [Neif Murad], e os filhos. Ele
assinou um termo dizendo que qualquer coisa que
acontecesse comigo - se eu, andando nas escolas, de
repente morresse - então ele seria o único suspeito.
Eu até andei com policial na zona rural e tinha
medo, porque eu não confiava na polícia.
-E hoje a senhora confia?
-Não... Só confio no meu filho, que é policial. Por ironia do
destino. Ele se tornou policial porque soube que o
criminoso que matou o pai dele estava na região.
Então ele foi ser polícia para se vingar. [Mas
depois, quando se tornou policial] ele foi segurança
do padre Ricardo [Rezende], e depois do frei
Henri [de Roziers, da CPT de Xinguara
(PA)]. Hoje ele está ajudando a montar a polícia
comunitária que está sendo criada agora no Pará.
-Foi por medo que a senhora se afastou da luta?
-Isso. E também começou a troca de padres. Porque quando o
padre da paróquia é uma pessoa que luta, é outra
coisa. Os padres Aristide e o Chico
eram assim. Aí depois vai trocando e vão mudando as
coisas, né...
-Então a senhora se voltou mais para o trabalho na escola...
-Eu hoje sou diretora da escola que tem o nome dele [Gringo].
Faz 22 anos que eu trabalho lá, desde 1986. Entrei
como professora e a escola já se chamava Raimundo
Ferreira Lima. Eu passei uns dez anos afastada
que eu não ia nem em reunião, sabe? Era só da escola
para casa, e da casa para escola... Esqueci até da
Igreja. Os meninos falaram: "Mãe, eu não estou
reconhecendo a senhora, vamos lutar, arregaçar as
mangas!", e pensei "É mesmo". Agora já comecei de
novo a levantar, brigar, falar, exigir, reclamar...
-Como a senhora se engajou no combate ao trabalho escravo?
-A Aninha [Ana Souza Pinto, também da CPT de
Xinguara] sempre me ligava, e um dia disse "Oneide,
tenho um projeto". Era o "Escravo, nem pensar!". O
primeiro projeto que fizemos [na escola] ano passado
foi ótimo. Trabalhamos seis meses, apresentamos e
depois mandamos as fotos para a Repórter Brasil.
Este ano outro projeto nosso foi agraciado com o
financiamento.
-Qual é a proposta do projeto deste ano?
-Chama-se "Conscientizar para erradicar". Nós vamos fazer
reuniões em pontos estratégicos da cidade, onde há
mais pessoas que trabalham. Vamos convidar o juiz e
a promotora para dar palestras nas escolas. Eu já
até falei com o juiz, ele aceitou e até parabenizou
a gente, disse que é muita coragem fazer esse
trabalho, principalmente aqui na região de São
Geraldo, porque já foram constatados vários casos de
trabalho escravo.
-A luta contra o trabalho escravo está ligada ao trabalho do
Gringo?
Com certeza. Essa era a luta dele. Hoje eu sinto a falta do
Gringo. São 28 anos, mas pra mim foi ontem.
Nunca a gente esquece...Quando ele morreu, o meu
caçula tinha nove meses. Hoje ele está com 28 anos.
Agora já tenho netos: são 16. Eu estou com medo de
ter bisnetos! Já falei: não quero bisneto porque se
não vou ficar mais velha. O Gringo era um bom
pai, um bom marido... Passou um bom tempo e eu nunca
me casei... Sinto saudades.
Beatriz Camargo
Reporter Brasil
23 de julho de 2008
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