O
presidente Lula assumiu o governo com a
promessa de quebrar um tabu e dar início
à abertura ampla e irrestrita dos
arquivos da ditadura militar. Cinco anos
se foram, os documentos oficiais não
apareceram e a história continua refém
de um passado ainda não totalmente
conhecido.
Na última semana, num gesto embaraçoso para o
Brasil, coube a outro país revelar
mais um capítulo do que por aqui se
tenta esconder. A Justiça da Itália
determinou a prisão de treze brasileiros,
entre militares e civis, acusados de
envolvimento na morte de dois cidadãos
italianos no começo da década de 80.
Segundo as autoridades da Itália,
há provas mais do que suficientes para
demonstrar que a ditadura brasileira não
só integrou a chamada Operação Condor
-uma aliança entre as ditaduras da
América do Sul montada para caçar e
exterminar opositores desses regimes-
como participou ativamente dela. O
ex-presidente João Figueiredo,
que morreu em 1999, encabeça a lista dos
envolvidos. Além dele, há quatro
generais que ocuparam postos importantes
no governo militar, como o ex-ministro
do Exército Walter Pires, o ex-chefe
do SNI Octávio Medeiros e o
ex-comandante do III Exército Antônio
Bandeira -todos já falecidos.
Completam a relação ex-agentes e
policiais que integravam o aparato
oficial da repressão- sete deles ainda
vivos.
É a primeira vez que militares brasileiros são
apontados pela Justiça como responsáveis
por homicídios cometidos durante a
Operação Condor. "Esse episódio é
importante para que o Brasil
aprenda que anistia não é amnésia", diz
Cezar Britto, presidente da Ordem
dos Advogados do Brasil. "É
constrangedor ver outra nação fazer o
nosso dever de casa." Para os acusados
ainda vivos, os pedidos de extradição
devem restar como punição somente no
plano simbólico. A Constituição garante
que nenhum brasileiro pode ser
extraditado por crimes cometidos no
país. Os treze brasileiros integram uma
lista de 140 ordens de prisão expedidas
pela juíza Luisanna Figliolia, do
tribunal penal de Roma, que nos últimos
nove anos investiga a morte de 25
italianos, todos assassinados por
governos militares latino-americanos. Os
pedidos de prisão atingem, além de
brasileiros, ex-autoridades argentinas,
uruguaias, chilenas, bolivianas,
peruanas e paraguaias. A ação da Justiça
italiana não é um expediente inédito na
Europa. Em 1998, o juiz espanhol
Baltasar Garzón ganhou fama
mundial ao determinar a prisão do ex-ditador
Augusto Pinochet, apontado como o
responsável por assassinatos de cidadãos
espanhóis no período em que esteve à
frente do governo chileno. Pinochet,
que morreu em 2006, ficou 503 dias
detido em Londres. Em 1990, a Justiça da
França também condenou o militar
argentino Alfredo Astiz,
conhecido como "Anjo Louro da Morte",
pela morte de duas freiras francesas em
1977.
A decisão da Justiça italiana veio no
momento em que governos da América
Latina começam a punir os algozes
das ditaduras do século passado. Na
Argentina, onde a "guerra suja"
contra os insurgentes esquerdistas matou
30.000
pessoas, a Suprema Corte considerou que
a lei de anistia aos militares era
inconstitucional. Com isso, abriu-se o
caminho para que se instaurassem novos
inquéritos contra os criminosos de farda
ainda vivos. No início de dezembro, seis
militares foram condenados pelo
seqüestro e morte de guerrilheiros de
uma organização esquerdista. No Chile,
há generais presos por envolvimento com
o extermínio de oposicionistas. No
Uruguai, também há uma onda de
condenações: até o ex-presidente Juan
María Bordaberry, um dos 140
acusados no processo italiano, está
cumprindo pena. "Essas decisões são
pedagógicas para o Brasil. Nós
somos o único país que ainda se recusa a
passar a limpo esse triste legado", diz
o advogado
Jair Krischke,
presidente do Movimento de Justiça e
Direitos Humanos, que colaborou com a
investigação italiana. A Lei da Anistia
foi um pacto sensato que ajudou
militares e opositores a sair de um
paralisante estado de beligerância. Não
deve, porém, servir como justificativa
para varrer para debaixo do tapete os
crimes cometidos por ambos os lados.
Diego Escosteguy
Revista Veja
7 de dezembro de 2008