Brasil

Trabalho Escravo

1.200 escravos são libertados

em usina no Mato Grosso

Maior operação de resgate de trabalhadores da história do país confirma situação da Destilaria Gameleira, em Confresa (MT), que já havia perdido clientes devido à utilização de mão-de-obra escrava.

 

A situação aqui é horrível. Há superlotação dos alojamentos, que exalam um mau cheiro insuportável. A única água que recebe tratamento é aquela que vai para as caldeiras e não para os trabalhadores. A alimentação estava estragada, deteriorada. O caminhão chega jogando a comida no chão.

São Paulo – Foram libertadas mais de 1.200 pessoas da Destilaria Gameleira, no município de Confresa (MT), a maior operação de libertação de trabalhadores escravos já ocorrida no país. Até então, o título estava com a fazenda Roda Velha, de Ernesto Dias Filho, localizada no município de São Desidério (BA), quando 745 ganharam a liberdade em agosto de 2003. Nas últimas semanas, a usina Gameleira, produtora de álcool, esteve no centro de uma polêmica que envolveu até o presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti (leia abaixo). Grandes distribuidoras de combustível cortaram os contratos com a Gameleira após ficarem sabendo que comercializavam com uma empresa que estava na “lista suja” do trabalho escravo do governo federal. A relação, atualizada semestralmente, mostra pessoas físicas e jurídicas que, comprovadamente, cometeram esse crime e que tiveram seus processos transitados em julgado dentro do Ministério do Trabalho e Emprego.

 

Após empresas como Ipiranga e Petrobrás afirmarem que não comprariam mais combustível da destilaria, Cavalcanti, segundo ele a pedido de deputados federais, fez uma “consulta” com o objetivo de descobrir por que o álcool da Gameleira não estava mais sendo comprado. A repercussão na imprensa e junto à sociedade civil foi bastante negativa. Nesta sexta-feira (17), uma operação do grupo móvel de fiscalização do MTE iniciada nesta semana, que conta com a participação do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal, encontrou 1.200 pessoas escravizadas na fazenda.

 

“A situação aqui é horrível. Há superlotação dos alojamentos, que exalam um mau cheiro insuportável. A única água que recebe tratamento é aquela que vai para as caldeiras e não para os trabalhadores. A alimentação estava estragada, deteriorada. O caminhão chega jogando a comida no chão. Pior do que a comida que se dá para bicho, porque esse pelo menos tem coxo”, afirma Humberto Célio Pereira, auditor fiscal do Trabalho e coordenador do grupo móvel de fiscalização.

 

Todas as características confirmam a existência de escravidão contemporânea, do aliciamento ao endividamento e à impossibilidade de deixar o local. Os trabalhadores foram levados de Pernambuco, Maranhão e Alagoas, iludidos pelas falsas promessas de salários e boas condições de serviço dadas pelos “gatos” (contratadores de mão-de-obra a serviço da usina). Ninguém recebia salário e era obrigado a comprar tudo da cantina da empresa, com preço acima do mercado. Os gastos eram anotados para serem descontados do pagamento final – sempre menor do que o combinado pelo “gato”. Devidos às péssimas condições de saneamento e higiene, não raro ficava-se doente. Contudo, até o soro recebido nas crises de diarréias era descontado dos peões. De acordo com Humberto Pereira, toda a operação está sendo filmada e fotografada.

 

A fazenda Gameleira, localizada no município de Confresa, Estado do Mato Grosso, já havia sido flagrada outras três vezes utilizando escravos. Apenas em uma das ações dos grupos móveis de fiscalização 318 pessoas foram libertadas. A propriedade produz 30 milhões de litros de álcool por ano. Agora, verificou-se que as condições de trabalho na Gameleira continuam as mesmas, tendo sido feita apenas uma “maquiagem” para encobrir a situação.

 

Vale ressaltar que o próprio Eduardo de Queiroz Monteiro, proprietário da Gameleira, pressionado pela perda de seus clientes, havia solicitado ao Ministério do Trabalho e Emprego uma nova fiscalização para mostrar que a situação havia se normalizado após a última operação. O ministro Ricardo Berzoini, entretanto, não cedeu às pressões. Contudo, enquanto os diretores da usina tentavam limpar o nome da empresa, surgiram novas denúncias de trabalho escravo, envolvendo violência física contra os peões. A partir daí, uma operação foi realizada.

 

Agora, os cerca de 1.200 trabalhadores estão reunidos na sede da empresa. Querem ir embora para as suas cidades, mas não têm dinheiro para pagar a passagem de volta – situação semelhante com as 400 pessoas que estão sendo resgatadas da usina de cana-de-açúcar Alcopan, também em Mato Grosso).

 

A Gameleira tentou impedir que os trabalhadores fossem retirados da usina, o que interromperia a produção. Nesta sexta-feira, o grupo móvel de fiscalização vai se reunir com a diretoria da empresa para tentar um acordo que viabilize o pagamento dos direitos trabalhistas e a retiradas das pessoas. Está sendo solicitada uma Vara Itinerante da Justiça do Trabalho para resolver situação.

 

Cadeia produtiva

 

A suspensão nos acordos comerciais entre a Gameleira e as distribuidoras aconteceu após elas terem conhecimento do estudo da organização não governamental Repórter Brasil, que identificou a cadeia produtiva do trabalho escravo no país. Essa pesquisa, solicitada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, serviu de embasamento para que fosse firmado o Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, iniciativa do Instituto Ethos de Responsabilidade Social e da Organização Internacional do Trabalho. O Pacto, assinado no dia 19 de maio em Brasília, já conta com cerca de 80 signatários, incluindo grandes empresas como Coteminas, Carrefour, Pão de Açúcar, Wal-Mart/Bompreço, Votorantin, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.

 

A pesquisa aponta que a Galemeira comercializava com a Ipiranga, Petrobrás, Shell, Texaco, Total e PDV, fornecendo combustível principalmente paras as regiões Norte e Nordeste. Dessas, Ipiranga, Petrobrás, Shell e Texaco assinaram o pacto.

 

No dia 11 de maio, os advogados da família Queiroz Monteiro conseguiram uma liminar na Justiça do Trabalho suspendendo o nome de sua fazenda da "lista suja", base da cadeia produtiva. Contudo, em uma ação exemplar, alguns signatários mantiveram a interdição de compra, como a Ipiranga. Fontes da empresa revelaram que decisão da companhia segue determinações do pacto e é coerente com uma conduta de ética e de responsabilidade social. A empresa só retornará a comprar álcool combustível da Gameleira quando o governo federal emitir uma certidão negativa sobre trabalho escravo na propriedade.

 

Mas de acordo com Ruth Vilela, chefe da Secretaria Nacional de Inspeção do Trabalho, que coordena a ação dos grupos móveis, não será fornecida nenhuma certidão atestando que a empresa saiu da lista. "A decisão do juiz não inclui apagar todas as informações que estão no ministério. Uma certidão deve, portanto, ser um reflexo de nossos arquivos. A única certidão possível, portanto, é uma que conste o histórico da empresa, quantas vezes foi fiscalizada, o que foi encontrado, as multas aplicadas." (...)

 

 

Leonardo Sakamoto

Agência Carta Maior

17/06/2005

 

 

 

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