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Um 
acampamento de índios do povo Guarani-Kaiowá na 
região de Curral do Arame, em Dourados (MS), foi 
atacado violentamente na  primeira hora de 18 de 
setembro. Na avaliação do Ministério Público Federal 
(MPF) do Mato Grosso do Sul, a ocorrência pode ser 
classificada como tentativa de genocídio. De acordo 
com relatos, os pertences e o barraco dos acampados 
foram in cendiados e o indígena Eugênio Gonçalves, 
de 62 anos, ferido à bala. 
  
Segundo documentos da Fundação Nacional do Índio (Funai) 
e do MPF, o ataque ocorreu por volta da 1h da 
madrugada, quando o grupo de índios dormia no 
acampamento improvisado construído no dia anterior 
na altura do km 10 da Rodovia BR-463, ao lado da 
Fazenda Serrana. A propriedade foi arrendada para o 
plantio de cana-de-açúcar pela Usina São Fernando. A 
usina, por sua vez, é um empreendimento da 
Agropecuária JB (Grupo Bumlai) com o
Grupo Bertin, um dos maiores frigoríficos da 
América Latina (leia 
mais abaixo). 
  
Analista pericial do MPF que esteve no local 
logo após o ocorrido foi informado que cerca de oito 
pessoas, algumas delas armadas, teriam participado 
da ação. "A movimentação do grupo [de indígenas no 
dia 17] deve ter atraído a atenção do proprietário 
da fazenda [Serrana] ou de quem a arrenda para fins 
de plantio de cana. Os índios narram que já era 
madrugada, cerca de uma hora da manhã, quando 
começaram os tiros. 
No 
momento da investida, `foi uma correria`. Mães 
agarravam seus filhos pequenos e tentavam fugir. 
Duas pessoas saíram feridas (...). O barraco 
construído por eles foi completamente queimado e as 
paliçadas erguidas para a construção de mais 
habitações arrancadas e/ou queimadas", 
discorre o relatório do MPF do MS.
 
  
Nos relatórios da Funai e do MPF, 
funcionários da Usina São Fernando e da empresa de 
segurança Gaspem são apontados como responsáveis 
pelo ataque. No documento da Funai, consta 
depoimento que afirma que "eles chegaram de repen te 
com lanterna na mão, não falaram nada, foram 
rasgando as lonas com facão e colocaram fogo no 
barraco. Quem atirou foi o Paulinho, funcionário da 
usina São Fernando, e o Gerente, [que] chama Roberto 
(...)". No mesmo relato colhido pela Funai, o 
sexagenário Eugenio conta que foi baleado na perna, 
caiu e recebeu uma coronhada no braço.  
  
Ao MPF, os indígenas também apontaram os 
seguranças da Gaspem como principais responsáveis. 
"A comunidade estima que, ao todo, naquela noite, 
compareceram ao local umas 20 pessoas. Frisaram que, 
na fazenda Serrana, enquanto ocorria a desocupação, 
um carro da firma dava cobertura". Para o analista 
do MPF, um funcionário da Gaspem explicou que 
a empresa havia sido contratada para guardar 
materiais da usina. 
  
Para o procurador do MPF em Campo Grande (MS),
Marco Antonio Delfino, o caso deve ser 
tratado como tentativa de genocídio - "um grupo 
armado teve intenção explícita de atacar outro grupo 
por suas características étnicas, porque são 
indígenas". As investigações devem ser apressadas e 
os resultados apresentados em menos de um mês.
 
"Em relação à empresa de segurança Gaspem, vamos 
atuar na área cível, criminal e administrativa - 
responsabilização criminal pelo ataque, indenização 
por este fato e outros semelhantes relacionados à 
participa&c cedil;ão da empresa. Do ponto de vista 
administrativo, será pedida a cassação do registro 
da empresa em face das irregularidades", adicona o 
procurador federal.  
  
Já a Usina São Fernando - arrendatária da Fazenda 
Serrana e que, conforme  documento da Funai, teve 
participação por meio de funcionários no ataque - 
deve ser co-responsabilizada. 
  
No processo, afirma Marco Antonio Delfino, a 
Gaspem poderá ser denunciada também por outras 
ações, como a participação no despejo de indígenas 
kaiowá da Fazenda Campo Belo, na região de Porto 
Cambira (MS), em 2004, a morte do índio 
Dorvalino Rocha, 39, em Antonio João (MS), 
na fronteira com o Paraguai, em 2005, e a 
morte da índia Xurete Lopes, 70, durante 
desocupação forçada da fazenda Madama, no município 
de Amamb ai (MS), em 2007.  
  
Estréia complicada 
  
Instalada em Dourados (MS) em 2009, a Usina São 
Fernando é tocada por uma parceria da Agropecuária
JB (Grupo Bumlai), especializado em 
melhoramento genético de gado de corte, e o Grupo 
Bertin, um dos maiores frigoríficos produtores e 
exportadores de itens de origem animal das Américas.
 
  
Dono da Agropecuária JB, José Carlos 
Bumlai foi apresentado em 2002 ao então 
candidato presidencial Luiz Inácio Lula da Silva, 
que gravou alí os programas sobre agronegócio que 
foram usados na campanha, segundo matéria da revista
Dinheiro Rural 
reproduzida no site da Agropecuária JB. De 
acordo com a matéria, Lula teria 
assumido, nos vídeos, "um compromisso em defesa da 
propriedade e da produção, afugentando o fantasma de 
uma reforma agrária radical, que sempre pesou sobre 
os ombros do PT".  
  
O Grupo Bertin, que está em processo de união 
com o frigorífico 
JBS 
Friboi, 
maior empresa do setor no mundo, tem 27,5% de suas 
ações controladas pelo Banco Nacional de 
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). 
Em 2008, a São Fernando, primeiro empreendimento do
Bertin na produção de etanol, foi 
beneficiada com um empréstimo de R$ 402 milhões do 
BNDES. 
  
Em junho deste ano, a usina aderiu ao Compromisso 
Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho 
na Cana-de-Açúcar, acordo firmado entre o governo 
federal e os setores produtivo e sindical. A 
iniciativa visa propor melhorias aos cortadores de 
cana para melhorar a aceitação do etanol brasileiro 
como combustível "limpo" no mercado internacional, 
mas acabou excluindo questões básicas como a alimen 
tação. 
Para 
completar, o Compromisso Nacional abriga três usinas 
que fazem parte da "lista suja" do trabalho escravo. 
  
Procurado para comentar o ataque aos indígenas, o 
Bertin, através de sua assessoria de imprensa, 
afirmou que "os seguranças da usina [São Fernando] 
não andam armados e não se envolveram em nenhum 
conflito. Não temos nenhuma notícia em relação ao 
fato e estamos apurando a informação. A Usina São 
Fernando não é proprietária de nenhuma terra na 
região". 
  
Já o diretor-superintendente da Usina São Fernando,
Paulo César Escobar, confirmou que "existe um 
contrato de parceria agrícola entre a Usina e a 
Fazenda Serrana, ou seja, a usina planta cana na 
área de fazenda e divide os frutos com o 
proprietário". Ele teria sido informado que "o 
conflito não ocorreu na área de plantio de cana 
(onde ocorre a parceria com a Usina São Fernando), 
mas em outra parte da fazenda", o que contraria o 
parecer emitido pela Funai. O diretor também 
negou qualquer relação com a Gaspem, que teria sido 
contratada pelo proprietário da Fazenda Serrana. A 
Gaspem foi procurada pela reportagem, mas não houve 
quem se manifestasse pela empresa.  
  
Histórico de conflitos 
  
Há seis anos, o grupo Guarani-Kaiowá do Curral de 
Arame está acampado às margens da BR-463, há 
aproximadamente 7 km de Dourados. Segundo a Funai, 
por duas vezes o grupo tentou voltar aos territórios 
originários, ocupado atualmente por grandes 
fazendeiros. Em junho de 2008, houve uma ocupação de 
um pequeno pedaço da Fazenda Serrana, próximo à mata 
da Reserva Legal da área, onde os indígenas fizeram 
pequenas roças.  
  
De acordo com o MPF, naquela ocupação a 
estratégia da fazenda foi "sitiar os índios através 
dos serviços da empresa de segurança Gaspem, 
que impedia que a Funasa [Fundação Nacional 
de Saúde] e a Funai promovessem atendimento e 
assistência médica. Naquele tempo, os índios só 
puderam ser visitados pelos órgãos indigenistas 
graças à intervenção da Polícia Federal". 
  
Com a reintegração de posse, os índios foram 
obrigados a ocupar a outra margem da BR-463, por 
causa de obras de duplicação da rodovia. Cerca de 
vinte pessoas formaram o Acampamento Apyka’y, onde 
construíram seis barracos e passaram a viver na 
dependência de cestas básicas da Funai. 
Verena Glass 
Repórter Brasil 
7 
de outubro de 2009 
  
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