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No subsolo da região conhecida como
Tríplice Fronteira encontra-se a principal reserva natural
de água potável da América Latina - e muito provavelmente a
maior do mundo. A maioria (71%) dessa área de 1,2 milhão de
quilômetros quadrados está em território brasileiro. O
restante divide-se entre Argentina (19%), Paraguai (6%) e
Uruguai (4%). O valor desse patrimônio natural é
incalculável; a cobiça que desperta também. E sua defesa
será um dos temas em pauta no Fórum Social da Tríplice
Fronteira, que será realizado em junho, na cidade de Porto
Iguaçu, Argentina. O jornalista Ricardo Alberto Arrúa,
editor do portal TerritorioDigital.com, é uma das vozes que
têm procurado denunciar os interesses internacionais no
aqüífero. Nesta entrevista, ele expõe sua preocupação com o
destino desse imenso reservatório e alerta para a tentativa
norte-americana de se infiltrar na região a pretexto de
combater supostas células terroristas. "O Paraguai", adverte,
"já permitiu que soldados estrangeiros realizem 'exercícios
regulares de treinamento para a luta contra as drogas e o
terrorismo', e tudo parece indicar que, quando a diplomacia
paraguaia fala em 'regularidade', o que de fato quer dizer é
que as tropas virão para ficar".
Rets - O Aqüífero Guarani é a maior reserva natural de água
doce do planeta. Que tipo de interesses ele desperta?
Ricardo Arrúa - A água doce, como se sabe, é um bem escasso
e indispensável à vida. E toda a humanidade vem tomando
consciência disso paulatinamente, embora não tenha
compreendido ainda como preservá-la. Sendo a água um recurso
tão limitado, é natural deduzirmos por que ela é a causa de
conflitos que se acentuam dia a dia de forma exponencial e
entendermos o interesse crescente dos Estados Unidos em
controlar as regiões onde estão localizadas essas reservas.
Para materializar esse controle - militar, obviamente -, os
norte-americanos estão dispostos a recorrer a todo tipo de
artifícios e falácias. Da mesma forma que, para controlar as
reservas petrolíferas do Iraque, anunciaram que o perigo
seriam as até hoje inexistentes armas de destruição em massa,
aqui na nossa Tríplice Fronteira, coração do Aqüífero
Guarani, a desculpa seria a possível existência de "células
adormecidas de fundamentalistas islâmicos". Eles usam como
pretexto a numerosa população originária de países árabes -
particularmente Síria e Líbano - que vive na região e atua
principalmente no comércio.
No entanto, à margem de todos os argumentos, o objetivo é o
mesmo: tomar posse de recursos que não lhes pertencem, mas
que lhes são necessários.
Rets - Que precauções os países da Tríplice Fronteira devem
tomar para se prevenir desses interesses?
Ricardo Arrúa - Lamentavelmente, alguns países da Tríplice
Fronteira acataram as justificativas utilizadas pelos
Estados Unidos para controlar a região. O Paraguai já
permitiu que soldados estrangeiros - entenda-se:
norte-americanos - realizem "exercícios regulares de
treinamento para a luta contra as drogas e o terrorismo", e
tudo parece indicar que, quando a diplomacia paraguaia fala
em "regularidade", o que de fato quer dizer é que as tropas
virão para ficar.
Na Argentina, recentemente, o coordenador norte-americano da
luta contra o terrorismo, Cofer Black, destacou que "a
Argentina é uma grande parceira dos Estados Unidos na luta
contra o terror", diante do vice-presidente, Daniel Scioli,
e de importantes ministros e funcionários do governo.
Podemos dizer, portanto, que pelo menos dois dos três países
da Tríplice Fronteira estão "colaborando" ativamente para
que o argumento terrorista ganhe credibilidade e resulte,
mais cedo ou mais tarde, em uma ação armada para que tomem
posse da água doce tal como fizeram com o petróleo iraquiano.
O que se deve fazer? O contrário. Refutar esses argumentos
com ações e atitudes, de forma conjunta e coordenada. Após o
episódio que mencionei, o próprio Cofer Black acabou
admitindo, na mesma reunião, que "até este momento não temos
conhecimento de nenhuma célula da Al Qaeda na Tríplice
Fronteira".
Rets - Esse tema será discutido no Fórum Social da Tríplice
Fronteira? Como acha que ele deve ser tratado?
Ricardo Arrúa - As organizações e os indivíduos - sejam
argentinos, paraguaios ou brasileiros - que se reuniram em
janeiro, na cidade de Porto Iguaçu [na Argentina], para
começar a dar forma a este fórum de debates consideraram o
tema prioritário, mas preferiram contextualizá-lo em uma
temática mais ampla, como "defesa do Aqüífero Guarani e dos
bens naturais da América Latina". Não fazê-lo teria sido um
erro, pois se o controle do Aqüífero Guarani é um objetivo
estratégico, observa-se, por outro lado, em toda a América
Latina, uma promoção de políticas de exploração de bens não
renováveis.
Como exemplo, basta citar o caso do México, que, em virtude
do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLC),
deveria privatizar os recursos naturais do seu subsolo e as
fontes de energia que agora pertencem ao povo.
Rets - O senhor acredita ser possível que, no futuro,
Argentina, Paraguai e Brasil briguem entre si por causa do
Aqüífero?
Ricardo Arrúa - Embora os conflitos bélicos tenham estado
presentes ao longo da história, estes são mais propensos a
começar quando os governos dos países envolvidos não são
inteiramente representativos e têm concepções autoritárias.
Por isso é importante a proposta de "construção de uma
democracia participativa com soberania, autodeterminação,
integração e solidariedade entre os povos". Este é o caminho
para a construção desse "outro mundo possível": sem guerras
ou mesquinharia, com solidariedade e dignidade.
É importante lembrar que o capítulo 18 da Agenda 21, que
trata dos recursos hídricos, destaca a preocupação com a
preservação da água doce, a imperiosa necessidade de uma
gestão conjunta dos recursos hídricos nas áreas de fronteira
e faz uma recomendação fundamental: "a cooperação entre
esses Estados pode ser aconselhável em conformidade com os
acordos e compromissos existentes, considerando os
interesses de todos os Estados envolvidos".
Rets - Dados indicam que o Aqüífero Guarani está recebendo
poluição do Aqüífero de Serra Geral, que fica no estado de
Santa Catarina, no Brasil. Isso pode vir a diminuir os
interesses internacionais?
Ricardo Arrúa - O Aqüífero Guarani também se chama Aqüífero
Gigante do Mercosul, porque compreende o Aqüífero Triásico (formações
Pirambóia-Rosário do Sul, no Brasil, e Buena Vista, no
Uruguai) e o Aqüífero Jurássico (formação Botucatu, no
Brasil; formação Misiones, no Paraguai, e formação
Tacuarembó, no Uruguai e na Argentina), que são parte
integrante dessa reserva, que deve ser preservada tanto da
poluição como dos interesses neocolonialistas. Porém tanto a
contaminação quanto o avanço estratégico militar para
apoderar-se da região são ainda incipientes e controláveis e
exigem da sociedade civil participação, compromisso e
protagonismo.
A incipiente poluição ainda não é um fator dissuasivo para o
controle da área quando levamos em conta que a Organização
das Nações Unidas profetiza que em 2025 a demanda por água
potável será 56% maior que a oferta. E, afinal, a
contaminação é infinitamente inferior à que verificamos em
outros cursos de água do hemisfério norte