Nicaragua

           

 

A crise institucional e o
“jogo das partes”

 

Com quase um ano de haver retomado a Presidência da República, Daniel Ortega se encontra no meio de uma violenta crise institucional que está sacudindo o país e que envolve os principais poderes do Estado.

 

Instalação CPC

 

Mal assumiu o cargo, que havia deixado em 1990 depois da derrota eleitoral do FSLN para Violeta Barrios de Chamorro, Ortega impôs uma forte aceleração ao processo de reestruturação do Poder Executivo com a criação, através de um Decreto Presidencial, dos Conselhos do Poder Cidadão (CPC).

 

Para Ortega e a Frente Sandinista, os CPC representam estruturas territoriais de participação cidadã abertas a toda a população, com o objetivo de encaminhar o país em direção à “democracia direta” e ao “poder popular” do “Povo Presidente”.

 

Seu significado intrínseco seria a construção das políticas públicas através da participação direta do povo organizado, onde as próprias autoridades de governo deveriam discutir os planos de investimento com a população.

 

Segundo esta concepção, que em parte lembra a experiência inicial dos antigos Comitês de Defesa Sandinista (CDS) dos anos 80, os próprios projetos governamentais e a gestão de parte dos fundos para financiá-los e desenvolvê-los deveriam estar em mão destas novas estruturas.

Rosario Murillo e Daniel Ortega

 

Para fazer tudo isto, o presidente Ortega reformou a Lei 290 -“Lei de Organização, Competências e Procedimentos do Poder Executivo”-, deixando a sua esposa Rosario Murillo como coordenadora dos CPC e do Conselho de Comunicação e Cidadania (CCC), personagem multifacetada que, definitivamente, mudou a imagem que se tinha, historicamente, de uma Primeira Dama do país.

 

Para a oposição parlamentar, composta pelas duas facções da direita liberal (a ALN de Eduardo Montealegre e o PLC do ex-presidente Arnoldo Alemán, atualmente condenado a 20 anos de prisão por uma infinidade de atos, mas sempre à frente de seu partido) e a Aliança MRS, os CPC representam um instrumento em mãos da família Ortega e do FSLN para criar estruturas institucionais paralelas, controladas pelo partido rubro-negro, com o objetivo de impedir os níveis de participação popular já previstos pela Constituição e pela Lei de Participação Cidadã.

 

Para as bancadas destes partidos políticos, aos quais se unem amplos setores da autoproclamada “sociedade civil”, que nestes últimos anos se apoderaram do conceito de “participação cidadã”, gozando também de financiamentos de agências internacionais para desenvolver políticas nos territórios, o temor é que seja possível criar uma estrutura partidária de poder que controle as instituições e os fundos dos diferentes projetos. Em sua concepção, a oposição ao governo de Ortega considera que não se quer dar mais poder ao povo, mas sim controlar o povo através de um poder repartido nos territórios e com a faculdade de dominar as instituições.

 

Governo da minoria

Daniel Ortega

 

Há um elemento que é chave em toda esta situação: Daniel Ortega está governando depois de ter alcançado a mais baixa porcentagem de votos em suas quatro tentativas para alcançar novamente a Presidência, e graças, sobretudo, à divisão da direita liberal que distribuiu a maioria dos votos dos nicaragüenses. Como resultado, a Frente Sandinista atualmente está em minoria na Assembléia Nacional, contando somente com 38 dos 91 deputados.

 

Com as reformas constitucionais de 1995 e de 2000, houve um lento mas progressivo deslocamento de poderes do Executivo ao Legislativo, até chegar às reformas de 2005 (atualmente congeladas até janeiro de 2008 por uma Lei Marco, de nível ordinário, que aparenta ser inconstitucional e que abriu um precedente muito perigoso para o futuro), que atribuem aos deputados a faculdade de ratificar ou não o nome dos ministros e dos diplomatas nomeados pelo Presidente da República.

 

Fica bem evidente que, para impulsionar os projetos, o presidente Ortega precisa manter neste momento um clima de colaboração e diálogo com a Assembléia Nacional e, principalmente, com o PLC de Arnoldo Alemán, cuja condenação a 20 anos foi recentemente ratificada pelo Tribunal de Apelação de Manágua (TAM), deixando aberta a possibilidade de uma transferência do ex-presidente à prisão  “La Modelo” de Tipitapa.

 

Em poucas palavras, para o FSLN, Arnoldo Alemán continua sendo um ás dentro da manga, para forçar o PLC, gozar de um “aliado ocasional” na Assembléia e evitar a reunificação da direita tendo em vista das eleições municipais de 2008. O prosseguimento do Pacto líbero-sandinista, como é chamado pelas forças opositoras ao governo, está prestes a ser rompido, já que na base liberal e entre os deputados das duas bancadas existem sinais evidentes de querer desvincular o Partido dos problemas pessoais do líder liberal.

 

A crise se agrava

Arnoldo Alemán e sua esposa

 

Diante da aceleração para a constituição dos CPC como órgãos institucionais, as bancadas opositoras, apoiadas pela maioria dos meios de comunicação que foram aumentando o tom opositor ao governo, decidiram reformar novamente a Lei 290, modificando alguns artigos que vão tirar do Presidente da República “o direito de criar através de Decretos Executivos, Conselhos como estrutura do Poder Executivo”. Desta maneira, os CPC poderão existir somente como órgãos do partido, mas sem nenhum tipo de caráter institucional. Para fazer isso, os deputados aprovaram a Lei 630, que foi vetada por Ortega e reenviada à Assembléia.

 

A partir desse momento, começou uma verdadeira luta entre poderes para a aprovação definitiva ou a eliminação da referida lei. Todos os deputados da oposição (52) juntaram seus votos para rejeitar o veto presidencial e a Lei 630 foi definitivamente aprovada. O Presidente da Junta Diretiva da Assembléia Nacional, o sandinista René Nuñez, foi instado a enviar a lei à Gazeta Diário Oficial para sua publicação.

 

Em menos de 24 horas, membros dos CPC entraram com um Recurso de Amparo na Segunda Sala Civil do Tribunal de Apelação de Manágua (TAM), controlada por juizes e magistrados afins ao FSLN. O tribunal determinou que Núñez não publicasse a Lei 630 enquanto a Corte Suprema de Justiça (CSJ) não decidisse sobre a sua suposta inconstitucionalidade, já que violentaria o direito constitucional do Executivo de organizar este Poder.

 

Em sua concepção, a oposição ao governo de Ortega considera que não se quer dar mais poder ao povo, mas sim controlá-lo

Mas Ortega foi mais além e, no dia 30 de novembro, em uma manifestação de massa na Praça da Revolução, voltou a emitir três decretos criando novamente os CPC, um Gabinete Nacional do Poder Cidadão, incluindo-o no Conselho Nacional de Planificação Econômica e Social (CONPES) e nomeou sua esposa Rosario Murillo como secretária desta instância.

 

“Os deputados continuam tentando cercear poderes do Executivo e isto vai contra a Constituição e a autonomia dos poderes do Estado. Podemos seguir assim, porque de qualquer modo vou reinstalar os CPC através de decretos presidenciais. Seria melhor começarem a trabalhar para a aprovação das leis que são urgentes para o país e do Orçamento Geral da República”, anunciou Ortega em frente a dezenas de milhares de ativistas dos CPC.

 

Poucos dias depois desta nova etapa da confrontação entre poderes, um reduzido grupo de magistrados de tendência sandinista da Corte Suprema de Justiça (CSJ) decidiu declarar inconstitucional a Lei 630, o que gerou uma violenta reação nas bancadas opositoras da Assembléia Nacional, levando-as a paralisar o trabalho parlamentar e a constituir-se no “Bloco contra a Ditadura”. 

Bloco contra a ditadura

 

O objetivo deste bloco é restabelecer a legalidade e a autonomia dos Poderes Legislativo e Judiciário, e chamar a população a rejeitar o que consideram como o início de uma nova ditadura na Nicarágua.

  

Além de paralisar o Parlamento, decidiram levar o protesto a nível internacional, considerando a possibilidade de invocar a Carta Democrática Interamericana da OEA e também de reformar o Orçamento Geral da República apresentado pelo Executivo, cortando todos os financiamentos para os projetos governamentais que estão sendo administrados pelos CPC como, por exemplo, o “Fome Zero”, “Usura Zero”. Estes projetos tiveram importantes reconhecimentos a nível nacional e internacional e estão dirigidos aos setores mais pobres do país.

 

O que o futuro nos apresenta?

 

Sem dúvida, a crise se aprofundou, mas a Nicarágua no passado tinha o costume de adotar soluções repentinas, que são parecidas a um “jogo das partes”, a uma obra teatral na qual cada um atua de acordo a um plano preestabelecido que se supõe mudaria tudo e que, finalmente, não mudaria nada. Mas não é isso o que o país precisa.

 

“A batalha eleitoral de 2008 será a oportunidade de colocar no debate público os dois grandes projetos existentes neste país: capitalismo ou revolução”

Esta nova oportunidade que uma parte da população decidiu dar a Ortega tem que ser aproveitada ao máximo, não tanto para melhorar a gestão de um sistema que enterra suas raízes na visão e na administração neoliberal da sociedade, mas para mudar esse mesmo sistema.

 

Entre muitas contradições (difícil esquecer a aliança do FSLN com as igrejas que levou à penalização definitiva do aborto terapêutico na Nicarágua, ou a administração política dos Poderes Judiciário e Eleitoral, ou o quase desaparecimento do Partido como estrutura visando condicionar o trabalho do Presidente e de seu governo) temos que reconhecer que se buscou apontar um caminho diferente com relação ao passado, mas isto não é suficiente.

 

O que o povo vai fazer? Segundo o diretor da Rádio “La Primerisima”, William Grigsby, “A batalha eleitoral, que se avizinha em 2008, é muito mais do que ganhar ou perder Manágua, ganhar ou perder as cadeiras departamentais, repetir ou perder os 86 municípios que se detém agora. É muito mais do que isso! Vai ser um referendum sobre a maneira de fazer governo. Vai ser uma possibilidade de avançar na consciência revolucionária das pessoas. Vai ser a oportunidade de colocar no debate público os dois grandes projetos existentes neste país: capitalismo ou revolução”.

 

“A direita e os ianques sabem - continuou Grigsby em seu programa ‘Sem Fronteiras’- que sua vitória ideológica é política e eleitoral, e passa pelo debilitamento, o esgotamento da Frente Sandinista como instrumento ideológico e político das pessoas. E por isso deixam o povo à sua própria sorte. Vão fundo. E o que é que nós devemos fazer? Vamos ficar de espectadores, ou vamos já abraçar, uma vez que surge a democracia partidária, algum desses postulados?  Passou a ser estratégico, então, a defesa do instrumento político que agora se chama Frente Sandinista. Que em algum momento, inclusive, ficou esgotado para fazer a revolução, mas que neste momento pode e deve ser o instrumento e temos que defendê-lo.

 

Há necessidade de recuperar sua institucionalidade, que volte a haver debates, assembléias, discussão e que, sobretudo, haja formação ideológica e política de seus quadros, principalmente de sua juventude. Há carência de quadros políticos sólidos, com firmeza ideológica e com vocação de serviço. Não os temos. Não estão. Não os há em quantidade suficiente.

 

Queremos verdadeiramente salvar à Frente da investida da direita? Recuperemos todos os andaimes estruturais, incorporando as pessoas, não as eliminando por decreto. Incorporando, submetendo tudo a debate, sem se importar com o que aconteça. Confiando na consciência das pessoas. Confiando na força das pessoas. Desatando a criatividade das pessoas. Acredito que essa é a melhor maneira de defender o instrumento Frente Sandinista”, concluiu Grigsby.

 

 

Em Manágua, Giorgio Trucchi
Rel-UITA
19 de dezembro de 2007

 

 

 

 

Fotos: Giorgio Trucchi

 

 

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