A
nanotecnologia como solução aos problemas
dos países em desenvolvimento?
Resposta e moral da história |
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Um artigo recente,1
que tem recebido grande acolhida pela imprensa
internacional, apresenta a nanotecnología como solução para
muitos problemas dos países em desenvolvimento. A partir de
entrevistas realizadas a 63 expertos em nanotecnologia de
diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento, os
autores, do Joint Centre for Bioethics da
Universidade de Toronto, identificaram as 10 principais
nanotecnologias que poderiam resolver problemas em áreas
tais como água, agricultura, nutrição, saúde, energia e meio
ambiente. As tecnologias vão de sistemas de produção e
conservação de energia, passando por sensores para aumentar
a produtividade agrícola e o tratamento da água até o
diagnóstico de doenças. Propõe-se, no artigo, criar um fundo
mundial para desenvolver tais tecnologias para os países em
desenvolvimento (Addressing Global Challenges Using
Nanotechnology). Cheia de boas intenções, a proposta
reflete um enfoque mecânico, supondo que uma vez
identificado corretamente o problema basta aplicar a
tecnologia adequada resolvê-lo. A maioria dos exemplos que
utilizam ignora que a relação entre ciência e sociedade é
bastante mais complexa. Vejamos alguns:
1)
Salamanca-Buentello et al. sugerem que semicondutores
moleculares (quantum dots) poderiam detectar, em
estágios precoces, moléculas associadas ao HIV-AIDS,
facilitando o tratamento e reduzindo a incidência da AIDS.
Os autores parecem esquecer da história dos últimos 10 anos,
a de uma guerra aberta entre as corporações farmacêuticas
multinacionais e os governos de países que pretenderam
fabricar antiretrovirales contra a AIDS. Nesse conflito, a
Organização Mundial do Comércio e o representante Comercial
de Estados Unidos jogaram sistematicamente o papel de
representantes dessas corporações. Os produtos da
nanotecnologia já estão sendo patenteados, em sua maioria
pelas principais corporações. Uma patente custa, nos Estados
Unidos, 30 mil dólares em burocracia legal, e uma patente
mundial pode estar em torno de 250 mil dólares.2
Moral da história:
a tecnologia é produzida num dado contexto social, e também
a eficiência e as implicações de sua aplicação dependem do
contexto social.
2)
O artigo identifica a nanotecnologia como a solução para
cinco dos oito Objetivos do Milênio de Nações Unidas.
Entre essas soluções estão os nanosensores e nanocomponentes
para melhorar a dosagem de água e fertilizar as plantas. Com
isso, seria possível reduzir a pobreza e a fome no mundo. Os
autores não lembram que, há pouco tempo, nos anos oitenta,
os Organismos Geneticamente Modificados (GMOs) foram
vozeados nos como a solução para acabar com a fome e a
pobreza. Entretanto, os GMOs terminaram sendo utilizados
principalmente nos países desenvolvidos, e três de cada
quatro patentes estão hoje em mãos de quatro grandes
multinacionais. Não houve melhoria para os países do
Terceiro Mundo; pelo contrário, os transgênicos invadiram
áreas não procuradas, como ocorreu no conhecido caso da
infecção do milho em Oaxaca, México; e se incrementou a
dependência comercial e tecnológica.3
Moral da história:
a eleição da tecnologia não é um processo neutro, depende
das forças políticas e econômicas. Não necessariamente
sobrevive a que melhor satisfaz as necessidades.
3)
Os autores supõem que as entrevistas feitas a 38 cientistas
do mundo em desenvolvimento e a 25 dos países desenvolvidos
lhes permitem falar dos interesses dos países em
desenvolvimento, como se aqueles fossem seus porta-vozes.
Num articulo anterior ao que estamos discutindo, três dos
mesmos autores sustentam que a posição do Príncipe Charles
argumentando que a nanotecnologia aumentará a brecha entre
os países pobres e os ricos, assim como o pedido de
moratória do grupo ETC ao financiamento público à
nanotecnologia “ignoram as vozes da gente dos países em
desenvolvimento”.4
Seguramente, com esta pesquisa, os autores pretenderam
preencher esse vazio. Mas, a opinião dos cientistas que
trabalham em nanotecnologia não necessariamente deve
coincidir com os caminhos mais apropriados para satisfazer
as necessidades dos pobres. Os cientistas são pressionados
pelos fundos públicos para sobreviver, pelos critérios de
relevância e temáticos das revistas científicas, pelas
publicações geralmente auto-censuradas, etc. Podemos
coincidir em que as doenças infecciosas são um dos
principais problemas que enfrenta o mundo em
desenvolvimento. Porém, a forma de atingir sua solução pode
diferir radicalmente. Não é o mesmo prevenir que curar. Não
é necessária a nanotecnologia para, por exemplo, diminuir
radicalmente a malária, como sugerem os autores. É claro que
nanosensores podem ajudar a limpar a água e nanocápsulas a
dirigir mais eficientemente as drogas. No entanto, na
província de Henan, na China, a malária foi reduzida num 99%
entre 1965 e 1990 como resultado da mobilização social
apoiada por fumigação, redes mosquiteiro e medicina
tradicional.5
Vietnã reduziu as mortes provocadas pela malária num 97%
entre 1992 e 1997 mediante a combinação de organização
popular, redes mosquiteiro, inseticida e medicina
tradicional.6
Moral da história:
existem diversos meios para um determinado fim, não sempre a
tecnologia é a solução, a organização da população — o que
alguns chamam de tecnologia social — pode ser
igualmente importante.
Noela Invernizzi e Guillermo Foladori
7
16 de maio de 2005
(4) Court, E.; Daar, A.S.; Martin, E.;
Acharya, T.; Singer,
P.A.
(2004). Will Prince Charles et al diminish the
opportunities of developing countries in nanotechnology?
Nanotechweb.org
http://www.nanotechweb.org/articles/society/3/1/1/1
Retrieved, April 19, 2005
(5)
WHO (World Health Organization). (2002).
www.who.int-tdr-publications-publications-sebrep1.htm
Retrieved, June 26, 2003.
(6) WHO (World Health
Organization). (2003). Viet Nam reduces malaria death toll
by 97% within five years. Health a key to Prosperity.
http://www.who.int/inf-new/mala1.htm
Retrieved, June 26, 2003.
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