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28-06-02

 

     

O amor nos tempos de Álvaro Noboa

 

Mauro Romero tem 32 anos, é viúvo e pai de um menino de quatro anos. Desde 1999, trabalhava na fazenda Os Álamos, até que, no último dia 16 de maio, um sicário fura-greve arrancou-lhe uma perna de um tiro. Álvaro Noboa tem 48 anos, é advogado, fez pós-graduação em Administração de Negócios e é o proprietário de Os Álamos e de mais quatorze fazendas bananeiras. Possui, também, quatro empresas de navegação, um banco, duas companhias de seguros, é dono do óleo A Única e da açucareira Valdez, só para você não se cansar... Ele é um dos donos do Equador!

Atualmente, Mauro Romero mora com a sua irmã, no bairro União dos Bananeiros, uma área de casas inacabadas, no subúrbio de Guayaquil. A residência principal de Álvaro Noboa é em Nova Iorque, numa área onde moram outros multimilionários. Lá, ele não necessita nem de guarda-costas nem de vidros polarizados. É um excelente lugar para refletir e contar dinheiro, sem ser incomodado pelos pobres: esses chatos, fedorentos e ressentidos que estão acabando com o Equador.

Mauro Romero olha para a perna mutilada e não acha consolo. Ele conta que, de noite, a dor é aguda, muito intensa. “O que vou fazer, agora, onde vou trabalhar deste jeito?”, se pergunta. A família faz a mesma coisa, mas sem achar uma resposta. Álvaro Noboa, por sua vez, lançou a sua candidatura para a Presidência da República, no último dia 22 de maio. Diante da insistência dos jornalistas, a respeito dos trágicos acontecimentos na fazenda Os Álamos, ele expressou: “amo os operários de Os Álamos...”.

Enquanto Mauro aguarda que alguém lhe consiga uma cadeira de rodas, para se locomover e ir visitar o seu filho que mora com a sogra dele, Álvaro Noboa percorrerá o país com seu helicóptero, com seus carros de quatro portas, e, às vezes, a pé, pelas ruas de algum vilarejo perdido. E isso será feito com a arrogância que o caracteriza, sorridente, cercado daqueles mesmos capangas que, no dia 16 de maio, entraram em Os Álamos, dando tiros, para que os ingratos grevistas se lembrem, para todo o sempre, de que Álvaro Noboa os ama.

No sinal de trânsito,

 “deve ser pago imposto da miséria”

O ônibus que nos leva ao bairro União dos Bananeiros é um supermercado em movimento, no qual são vendidos canetas, meias, balas e forros para celular. Existe, também, um supermercado em cada sinal de trânsito: “fruta, flores, doces, coco, fósforos, só que você tem que parar”, como canta o compositor Rubén Blades. O irmão de Mauro Romero conta: “essa pobre gente ganha o pão desse jeito; aqui, não há trabalho e eles não têm grana para comprar uma passagem e se mandar do país”.

Cada vendedor ambulante recita o seu pregão e desenvolve a sua linguagem gestual, olhando fixo nos olhos dos passageiros, em procura de um interessado. Esse recitado nos acompanha quase o percurso todo. Em um ponto de ônibus, sobe uma menina, pequena em idade e em físico, e, sem pronunciar palavra, começa a distribuir estampilhas. O silêncio dela fala mais, denunciando como vivem sete em cada dez equatorianos submersos na pobreza. Alguém dá a ela umas moedas; no entanto, pessoa alguma fica com as estampilhas: será que o rosto das figuras celestiais está tão sujo quanto o da menininha, parecendo que elas, também, estão pedindo ajuda?

Mauro, no socavão verde do bananal

“Na companhia bananeira, não fazia nenhuma parada, trabalhava sete dias, embrulhando banana”, comenta Mauro.

- Quanto você recebia?

- Trinta e dois, às vezes, trinta e quatro dólares por semana, não mais do que isso. É muito pouco; a gente reclama, mas não tem jeito.

- Você morava na plantação?

- Morava, muitas pessoas moram aí.

- Como é um dia de trabalho na fazenda?

- Eu levantava às 6:15, tomava o café-da-manhã e, às 6:40, tinha que estar na planta, para começar o trabalho. O almoço é às 12:30; eles dão quinze minutos e, depois, tem que voltar para o trabalho. Não dão nem um minuto de descanso, a gente come e tem que ir lá, continuar com o trabalho, até 6:30 da tarde. Assim como outros entrevistados, Mauro conta que a comida da empresa é muito ruim e que, com freqüência, enquanto almoçam, passa o avião e os fumiga.

- Quando acaba a jornada, o que você faz?

- Bem, a gente toma banho e tenta descansar. Mas, às vezes, ainda ficam caixas para serem carregadas nos contêineres. Então, a gente janta e, depois, volta para colocar as caixas, até oito, nove da noite, se tiver sorte.

- É paga a hora extra?

- Até 6:30, não tem hora extra. Se você ficar mais tempo carregando caixas, eles dão quatro dólares por semana. Mas, mesmo assim, é muito pouco! A noite toda carregando caixas... é cansativo.

- Eles pagam quatro dólares por semana sem importar a quantidade de horas extra trabalhadas?

- Não interessa nem a quantidade de horas trabalhadas nem o horário de chegada do contêiner, às vezes, à uma, às duas ou três horas da madrugada.

- Como é o local onde você dormia?

- Um quartinho pequeno, com duas camas, onde dormíamos quatro pessoas.

- Nesse quarto, além das camas, tem alguma outra coisa?

- Não, somente a cama, sem colchão e sem nada. A gente coloca o papelão das caixas de banana e dorme ali mesmo. O salário não dá para comprar um colchão.

- Existem banheiros?

- Só agora eles os estão consertando, pois todos estavam destruídos; não dava, a gente tinha que fazer as necessidades no mato.

Como exigir o cumprimento dos direitos constitucionais sem ser morto na tentativa?

No dia 6 de maio, os 1.200 trabalhadores da fazenda Os Álamos iniciam a greve, reclamando estabilidade em seus postos de três anos e a readmissão dos 129 trabalhadores demitidos em março. Reivindicam, também, o pagamento de horas extra e férias, a instalação de um posto de saúde e a afiliação ao Seguro Social. Essas reivindicações podem ser resumidas numa só: a Corporação Noboa deve cumprir as leis equatorianas.

- Como surge o sindicato?

- O pessoal começou a se queixar porque ganhava pouco. “Vamos ter que fazer uma greve. Temos que fazer alguma coisa!”, era o comentário que se ouvia na fazenda toda, e, assim, nasceu o sindicato. No começo, eu não queria assinar, pois existiam muitas pressões: eles ameaçavam com mandar todos os trabalhadores embora. Mas, num certo dia, juntei forças, assinei e entrei na luta. E, aí estava eu, no meio da greve, quando aconteceu a tragédia... Mauro fica calado, relembra, olha para o coto, faz nele uma massagem com ambas as mãos, ergue os olhos e olha para a sua irmã, cobre o rosto, chora. Nós estávamos dentro da fazenda -prossegue Mauro, com a voz entrecortada e enxugando o suor da testa- quando, de repente, escutamos que tinham derribado a porta e, então, entrou um grupo de pessoas com capuz na cabeça. Começaram a dar tiros a torto e a direito -bum, bum, bum- e, depois, conduziram a gente até o posto de vigilância. Lá, eles colocaram todo mundo de cara para o chão. Um desses delinqüentes tirou o meu relógio e disse “Anda, filho da mãe”, e, depois, deu um tiro na minha perna.

- O que aconteceu depois?

- Fiquei jogado, aí, várias horas, perdendo sangue. Achei que ia morrer por causa da dor. Esses “caras” foram-se embora quando ouviram uns disparos que vinham do Porto Inca, e, somente então, o pessoal pôde me ajudar e me levar a Guayaquil, onde amputaram a minha perna.

- Alguma pessoa da empresa visitou você?

- Não! Somente vieram os companheiros da Federação e do Sindicato.

Essa noite, Álvaro Noboa afirmava diante da imprensa que o conflito na fazenda Os Álamos tinha acabado e que estavam trabalhando normalmente. Porém, os grevistas ficaram sabendo, através do programa de rádio da Federação, que a luta continuava, que existia muita pressão internacional e que estava sendo organizado um boicote contra a marca BONITA. Essa noite, certamente, Mauro não conseguiu dormir, por causa da dor, pela angústia, pela raiva, pensando nos companheiros que continuam com a greve, pensando no filho dele, tão longe, desejando estar com ele, para lhe dar um abraço e lhe dizer que nunca se esqueça de que seu pai o ama mais do que qualquer coisa nesta vida.

Autor: Gerardo Iglesias

© Rel-UITA

20 de junho de 2002

 

 Fotos: Luis Alejandro Pedraza , Gerardo Iglesias, © Rel-UITA

 

 

 

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