Saúde do Trabalhador: cenários e perspectivas numa conjuntura privatista |
A Atuação dos Órgãos de Estado
na Saúde do Trabalhador
Para analisar a Saúde do Trabalhador na atualidade é necessário considerar sua trajetória, mesmo que em rápidas considerações, visando obter-se um referencial histórico para orientar uma reflexão sobre as perspectivas possíveis.
Inicialmente, é importante relembrar que o “movimento” da Saúde do Trabalhador como campo de práticas e conhecimentos surge com a consolidação do operariado industrial urbano nos países da América Latina e, no caso do Brasil, avança na conjuntura de re-democratização do país, em que o movimento social dos trabalhadores retorna à cena política, estabelecendo uma outra relação entre Estado e Sociedade. (Lacaz, 1996)
Não é errôneo afirmar que a luta da sociedade civil brasileira pela re-democratização é consagrada na Constituição Federal de 1988 e seus reflexos na saúde consubstanciam-se na proposta do Sistema Único de Saúde (SUS), conforme prescreve o Título VII, Capítulo II, Secção II, artigos 196 a 200. Frise-se que ao SUS cabe a atuação em Saúde do Trabalhador, através de ações e serviços de saúde públicos que busquem a promoção e proteção da saúde dos que trabalham e de medidas que coloquem sob seu controle os Serviços de Medicina do Trabalho das empresas. (Brasil, CF/88)
Ocorre que este papel é uma atribuição histórica do Ministério do Trabalho (MTb) desde os anos 30, mediante a chamada inspeção do trabalho, o que torna-se melhor delineado nos anos 70, quando sucessivas Portarias emanadas daquele Ministério passam a regulamentar a existência obrigatória e a forma de organização dos chamados Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMETs), aos quais é dada a tarefa de tutelar a saúde dos trabalhadores. (Lacaz, 1996)
Com o advento do SUS e sua regulamentação através da Lei 8080/90, fica claramente definido em seu artigo 6°. que a ele caberá atuar na Saúde do Trabalhador tanto na assistência, na vigilância e controle dos agravos à saúde relacionados ao trabalho, como na promoção da saúde, atribuições estas que, com a realização da II Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador (CNSTr), em março de 1994, ficam politicamente melhor demarcadas, na medida em que é aprovado, em seu relatório final, com resistências de órgãos ligados ao MTb, que o SUS deve ser a instância do Estado que coordenará e nucleará todas as ações voltadas à promoção, proteção e recuperação da saúde dos trabalhadores. (Brasil, MS, 1994)
Assim, ao ser aprovada aquela resolução na Plenária final da II CNSTr, abria-se importante espaço para que o Ministério da Saúde (MS), através do SUS, assumisse um papel bem mais atuante para fazer cumprir àquela resolução.
Sabe-se que isto não ocorreu, inclusive, dada a fragilidade orgânica do MS no campo da Saúde do Trabalhador, o que leva o MTb a retomar a iniciativa n(d)as ações para, sintomaticamente, em 29/12/94, baixar as Portarias n°. 24 e 25, que tratam, respectivamente, do Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO) e do Programa de Prevenção de Risccos Ambientais (PPRA), abrindo uma larga porta para a total terceirização das ações dos SESMETs, na perspectiva de flexibilização das relações de trabalho dos profissionais desta área, no que atende aos interesses das próprias empresas industriais e de serviços.
Se, no Sistema de Saúde, a organização das ações e serviços voltados para a atenção da saúde dos trabalhadores no início dos anos 80 estava baseada numa estratégia de incorporá-la na rede de serviços de Saúde Pública, isto é, os Centros de Saúde e Ambulatórios de Especialidade, como parte da atribuição do médico clínico geral (Freitas, Lacaz e Rocha, 1985), numa perspectiva de apreender a clientela, tanto de trabalhadores do mercado formal como informal, a partir de sua inserção no processo produtivo -- daí a grande importância assumida pela história profissional dos clientes atendidos – e não como meros consumidores de receitas e prescrições e de atuar mediante ações de vigilância dos locais de trabalho, num segundo momento, ao final dos anos 80, esta lógica é alterada (Lacaz, 1996). Isto ocorre a partir da ênfase que é dada à atuação de médicos do trabalho numa outra “rede”, cujo modelo é agora constituído pelos Centros de Referência em Saúde dos Trabalhadores (CRSTs) que não conseguem avançar em termos de maior eficácia no controle dos agravos e de cobertura da clientela de trabalhadores, até porque não consegue envolver a rede de serviços básicos de saúde, acarretando um alto custo para o possível resultado que gera, não conseguindo constituir-se como alternativa aos convênios médicos e aos próprios SESMETs (Ribeiro e cols., 1998)
Já no MTbE a questão da saúde dos trabalhadores é tratada no sentido de credenciar empresas e profissionais da área da medicina do trabalho e engenharia de segurança, os quais vão atuar na elaboração dos chamados PCMSOs e PPRAs, dando a falsa impressão de uma melhor, mais competente e mais abrangente cobertura, frise-se, somente aos trabalhadores com vínculo empregatício, portanto incluídos no mercado formal de trabalho, os quais nos dias de hoje já são a minoria dentro da População Economicamente Ativa (PEA), dada a precarização das relações e vículos de trabalho.
Por outro lado, a Previdência Social (PS) que nunca atuou como uma efetiva seguradora, na medida em que pouco se interessa pela prevenção e controle dos acidentes e doenças do trabalho, agindo apenas na “reparação” dos danos após a sua ocorrência, mesmo assim numa lógica que dá prioridade ao corte de benefícios, acena agora com a perspectiva de privatização do Seguro de Acidentes do Trabalho (SAT), como parte da Reforma da Previdência Social. Para tal apresenta, num verdadeiro “canto da sereia”, a proposta de recriar as mútuas que seriam geridas por parcerias entre empresários e trabalhadores retirando-se, assim, o Estado dessa atribuição, o que abre espaço para que potentes grupos seguradores privados assumam o controle de um mercado que envolve bilhões de dólares (Schubert, 1996) atingindo, segundo algumas estimativas, cerca de US$ 4 bilhões!
O espaço a ser ocupado
pelo SUS na política de Estado
Dado que os princípios do SUS são a universalidade, a integralidade, a equidade, a hierarquização, o controle social das ações de saúde que cabem a cada nível de governo, pode-se advogar que ao nível estadual caberia o papel de normatização das ações, assessoria, formação e apoio técnicos à instância municipal, facilitando o repasse dos recursos e atribuições, tendo como meta o desenvolvimento de uma metodologia de intervenção nos ambientes e locais de trabalho que adote um rol de diretrizes operacionais. Isto também deve envolver uma maior capacidade auditora do nível estadual, na perspectiva de garantir a qualidade das ações e serviços executados pelo nível municipal. Tais diretrizes devem contemplar práticas sanitárias que englobem a atenção à demanda (espontânea ou criada a partir de prioridades) e a vigilância à saúde, aplicadas num “território área/micro-área” onde as pessoas moram ou trabalham, definido de conformidade com uma visão processual e participativa. (Mendes e cols., 1993)
Esta visão de processo deve considerar, para além das questões meramente administrativas, a incorporação de questões outras que levem à transformação das práticas em saúde, ou seja: enfoque de planejamento estratégico, levantamento das necessidades de saúde da população, adscrição da clientela, montagem de sistema de referência e contra-referência, aprimorando o relacionamento entre hospitais de referência, ambulatórios de especialidades e rede básica, controle social dos serviços. (Mendes e cols., 1993) Aqui o território é visto como “um espaço em permanente construção, produto de uma dinâmica social onde tensionam sujeitos sociais postos na arena política.” (Mendes e cols., 1993, p. 166) Assim, o território envolve componentes econômicos, políticos, culturais e epidemiológicos que devem ser permanentemente avaliados para uma maior eficácia das ações de saúde.
A atenção à demanda deve envolver toda a rede de serviços de saúde numa perspectiva de hierarquização das ações, contemplando desde a rede básica no atendimento de acidentes e doenças do trabalho, os ambulatórios de especialidades/centros de referência, hosptais regionais e universitários para dar conta dos problemas de saúde relacionados ao trabalho mais frequentes e/ou incapacitantes que necessitam dessa retaguarda.
Por outro lado, o enfoque da vigilância à saúde poderá superar abordagens redutoras e fragmentadas como as inspeções do trabalho, praticadas pelos órgãos do setor Trabalho.
A vigilância à saúde aplicada à saúde dos trabalhadores está calcada numa intervenção participativa sobre problemas cujo enfrentamento deve ser contínuo, eleitos no âmbito dos grupos e áreas homogêneas de risco dentro da população trabalhadora, alocados em espaços de abrangência dos serviços básicos de saúde, dos quais deve ser conhecido o perfil do parque produtivo. Tal modelo sanitário/epidemiológico deve atuar sobre riscos, cargas de trabalho, danos, acidentes, doenças, sequelas dos agravos que ocorrem nos locais de trabalho e, eventualmente, no meio ambiente circundante, daí a necessidade de uma articulação intersetorial dos vários órgãos de governo que atuam na saúde, no meio ambiente, na agricultura, no trabalho, etc.. (Ribeiro e cols., 1998)
Frise-se que atualmente as atividades de vigilância estão pulverizadas nos órgãos de vigilância sanitária, epidemiológica, de controle de vetores, de educação para a saúde, que atuam tanto sobre o meio ambiente, incluído o do trabalho, não dando conta dos problemas sanitários que ocorrem nos territórios. Trata-se, então, de uma atuação interdisciplinar, que integra diversos saberes e práticas, articulados pela lógica epidemiológico-populacional, integrando conceitos e metodologias, no sentido de atacar problemas concretos surgidos a partir da base territorial.
A constituição de serviços de saúde que adotem a metodologia acima apontada poderá superar a ineficácia e ineficiência nas ações de promoção, prevenção, manutenção e recuperação da saúde, na medida em que se adote uma política que busque articular as várias instâncias dos diferentes níveis e os organismos existentes num mesmo nível de governo, sempre pensando no envolvimento da Universidade e contemplando as demandas dos atores sociais, particularmente representados pelos trabalhadores, sejam aqueles do setor informal e desempregdos, sejam os do mercado formal. Daí concluir-se que a política neoliberal do Estado Mínimo, não cabe neste figurino.
Por onde tem caminhado
o Movimento Sindical
dos trabalhadores?
Se, como já foi assinalado, a luta pela melhoria das condições, ambientes e a defesa da saúde no trabalho surge e cresce juntamente com a trajetória do movimento da sociedade civil pela re-democratização do país consubstanciando-se, num primeiro momento, no avanço das cláusulas dos Acordos Coletivos de trabalho, referentes à saúde e trabalho e nas assessorias técnicas em medicina e segurança do trabalho que vicejaram nos anos 80, na década seguinte observa-se uma clara mudança de rumos (Lacaz, 1996).
Premido pela crise de desemprego aberto, pela diminuição do número de associados, pela reestruturação produtiva que se acompanha da desregulamentação de direitos trabalhistas e previdenciários conquistados ao longo de anos de luta; o movimento sindical adota estratégias no mínimo discutíveis. Melhor explicando: terceiriza assessorias jurídicas e de medicina e segurança do trabalho, desmonta valiosas experiências historicamente acumuladas, como é o processo pelo qual passa hoje o Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (Diesat) e avança pouco na proposição de cláusulas em saúde e trabalho, a ponto de tornarem-se bastante repetitivas e de na prática ser muito discutível sua efetividade (Lacaz e Campos, 1994).
Na verdade, o que ocorre é a falta de uma “... estratégia global de enfrentamento das questões relacionadas à saúde no trabalho para além da compensação financeira imposta pela lógica mercantilista dos adicionais e da indenização pos facto, a despeito da palavra de ordem norteadora das primeiras ações intersindicais ... ‘Saúde não se troca por dinheiro.’’’ (Lacaz, 1997, p. 11) Mais ainda, o movimento sindical de trabalhadores também não enfrentou a paradoxal posição em que defende o setor público de saúde, isto é o SUS, nos grandes fóruns organizados por Centrais Sindicais, mas ao mesmo tempo negocia com as empresas cláusulas que ampliam a cobertura de seus associados pelos Convênios e Grupos de Seguro Saúde. Tal postura, além de constituir-se num “nó” político-ideológico não desatado, reflete ainda um “... elitismo e uma posição que foi se ‘despolitizando’, (...) dos órgãos de representação de ranço corporativista, particularmente aqueles de categorias de setores produtivos de ponta da economia. “ (Lacaz, 1997, p. 11) De fato, como refere Costa (1994, p. 24-25):
“Se nas greves do ABC em fins da década de 70, a medicina de empresa foi vista como parte do esforço de controle sobre a força de trabalho, nos anos subseqüentes a demanda por assistência médica diferenciada da oferta da previdência social e, posteriormente do SUS, tranformar-se-ia em ítem da agenda de negociação coletiva ...” (itálicos no original)
De certa forma estas posições são um reflexo da mudança de estratégia do movimento sindical que ressurgira no final dos anos 70, o qual passou da posição de confrontação com o capital para a postura de uma certa conciliação, ou “cooperação conflitiva” (Rodrigues, 1995), resultado da própria modificação da formação sócio-cultural e dos hábitos de consumo das novas gerações de associados dos sindicatos representativos dos trabalhadores das indústrias automobilísticas, por exemplo (Rodrigues, 1997). Representam também a falta de raízes dos sindicatos dentro das empresas, na medida em que a possibilidade de organização por locais de trabalho (OLT) é ainda um horizonte longínquo, seja porque negado pelo patronato, seja porque não enfrentado cabalmemente pelo movimento.
As perspectivas de superação
dos entraves
Considerando o pano de fundo da globalização e da reestrutração produtiva, da flexibilização das relações de trabalho e o discurso empresarial da competitividade e da qualidade total, associado à proposta de Estado Mínimo, de caráter neoliberal, na qual ao mercado é dado o papel de maior regulador das relações econômicas e sociais (Ibañez, 1998), pode-se depreender que a solução dos problemas é tarefa das mais complexas.
Diante da possibilidade de uma cada vez maior privatização dos serviços de saúde (a título de exemplo, a nova regulamentação dos planos de saúde prevê o acesso a eles mediante o pagamento de mensalidades de somente R$ 10,00), da escalada da privatização do Seguro de Acidentes do Trabalho (SAT), é para a perspectiva de aprofundamento da municipalização da saúde que apontam as cidadelas de defesa do DIREITO À SAÚDE, inscrito na Constituição Federal de 1988.
Trata-se de desenvolver, na prática sindical, uma estratégia de ampliar o controle social sobre os serviços e ações de saúde, incorporando na atividade dos serviços, em toda a sua rede, ações de assistência e vigilância que partam do conhecimento do território e das necessidades da população, considerando as áreas de risco e o parque produtivo, para que a intervenção sobre os fatos geradores de agravos à saúde oriundos dos processos de trabalho tenham a eficácia e a abrangência necessárias. Trata-se também, de elevar a consciência sanitária1 (Berlinguer, 1978) tanto da população que mora e trabalha na área de ação das Unidades de Saúde, como dos próprios servidores públicos, numa aliança que permita elevar a cidadania a patamares que dêm autonomia aos projetos populares de participação e maior grau de interferência sobre as decisões relativas às políticas públicas. Para tal, é mister pensar na possibilidade de transformar propostas tímidas e conservadoras como o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs) e o Programa de Saúde da Família (PSF) em espaços criativos e aglutinadores das demandas de saúde procurando, por exemplo, articular o momento da reprodução social e do consumo (no domicílio), com o momento da produção (nos locais de trabalho), através da realização de censos de morbidade e cadastramentos populacionais que permitam uma maior aderência da população aos Serviços de Saúde locais, na perspectiva de implantação do Distrito Sanitário, construído como um processo social que dê conta dos problemas individuais e coletivos de saúde (Mendes e cols., 1993). Esta estratégia deve ocorrer baseada na efetiva participação dos trabalhadores e no envolvimento dos setores organizados da comunidade tais como os sindicatos, as associações de moradores, as comunidades de base, as organizações não-governamentais, etc.. É através da participação e da organização que poder-se-á superar os obstáculos que se antepõem à conquista da saúde e melhoria das condições de trabalho, transformando-o em algo prazeroso e potencializador das capacidades humanas!
Francisco Antonio de Castro Lacaz2
© Rel-UITA
Notas
1 Para Berlinguer (1978) consciência sanitária é o conhecimento de que a saúde é um direito de todos e que deve-se lutar sempre para ampliar tal direito, na medida que não é algo garantido para sempre.
2 Professor adjunto doutor do Centro de Estudos em Saúde Coletiva (Cesco) da Universidade Federal de São Paulo – Escola Paulista de Medicina (Unifesp - EPM). Texto produzido em maio de 2000 para Seminário realizado com a Diretoria do Sintratel de São Paulo.
Bibliografia
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11. Ribeiro, Herval Pina, Wünsch Filho, Vitor, Lacaz, Francisco Antonio de Castro e cols. Projeto de Políticas e Práticas na Área de Saúde do Trabalhador para o Estado de São Paulo. Relatório: diagnóstico de situação e propostas. São Paulo: Universidade de São Paulo/Faculdade de Saúde Pública-Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, abril de 1998. 51 p + anexos [mimeo]
12. Rodrigues, Iram Jácome O Sindicalismo brasileiro da confrontação à cooperação conflitiva. São Paulo em Perspectiva, v. 9, n. 3, p. 116-26, 1995.
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