Uruguai
O caso do
milho transgênico:
evidências
do inconfessável? |
O Poder Judiciário
resta como a última garantia de valores básicos
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Às vezes os
fatos, seu conteúdo, sua seqüência cronológica resulta reveladora. Façamos um
breve inventário de alguns fatos relacionados com a intempestiva autorização que
os Ministérios de Pecuária, Agricultura e Pesca e de Economia e Finanças do
Uruguai outorgaram para a introdução e semeadura do milho transgênico (evento
MON 810) da multinacional Monsanto,
também conhecido como milho Bt.
28 de novembro de
2000
Nos moldes da
disposição do artigo 47 da Constituição Nacional Uruguaia, se aprova a lei
17.283, que declara de interesse geral a proteção do ambiente, a qualidade do ar,
a água, o solo e a paisagem, a conservação da diversidade biológica, a prevenção,
eliminação, mitigação e compensação dos impactos ambientais negativos, a
proteção dos recursos ambientais. A lei promove a formulação, instrumentação e
aplicação de uma política nacional ambiental e de desenvolvimento sustentável,
ao que define como “aquele que satisfaz as necessidades do presente sem
comprometer a capacidade de gerações futuras de satisfazer suas próprias
necessidades”. Fixa como um dos objetivos da política nacional ambiental, “a
distinção da república no contexto das nações como País Natural, desde uma
perspectiva econômica, cultural e social do desenvolvimento sustentável”.
26 de setembro de
2002
O procedimento
para a autorização de introdução de variedades vegetais geneticamente
modificadas, prevê a intervenção de uma Comissão Especial –integrada com
delegados de vários ministérios ou secretarias de estado– a elaboração de um
informe de parte desta, colocar a disposição do público de sus conclusões e a
possibilidade deste de participar com suas opiniões e comentários. Para a data
indicada convocou-se a audiência que correspondia ao “caso” do milho Bt evento
MON 810, que deveu ser suspensa pelas autoridades do governo perante da reação
indignada do público. A audiência se reduziu ‘a apresentação do produto por
parte da representante local de
Monsanto e nunca foi reiniciada ou completada após a suspensão.
1º de julho de
2003
Através do
Diário Oficial, os uruguaios tiveram conhecimento de uma resolução sem número
dos dois Ministérios anteriormente citados, que autorizavam a introdução do
milho transgênico no país e sua semeadura, sem nenhuma limitação, sem controle
de nenhuma espécie, sem medidas de proteção e sem que se tivessem realizado
previamente estudos locais de impacto ambiental ou sobre a saúde humana e
animal.
16 de julho de
2003
Na seção da
Comissão de Pecuária, Agricultura e Pesca da Câmara de Representantes, o Diretor
Nacional de Meio Ambiente, senhor Aramis Lachinián, informa aos senhores
deputados que na resolução ministerial não foram tidas em consideração as
propostas que a Direção Nacional de Meio Ambiente (DINAMA) formulara no seio da
Comissão Especial, todas elas tendentes a estabelecer medidas de controle,
previsão e eliminação de riscos ambientais.
18 de julho de
2003
Na sua sessão da
data, a Câmara de Representantes resolve por ampla maioria –que inclui a
integrantes de 4 dos 5 partidos políticos com representação parlamentar– enviar
uma minuta ao Ministério de Pecuária, Agricultura e Pesca, solicitando a
suspensão da aplicação da autorização, reclamando a realização dos estudos
prévios imprescindíveis.
24 de julho de
2003
A Associação de
Produtores Orgânicos do Uruguai (APODU) apresentou perante do Ministério de
Pecuária, Agricultura e Pesca os recursos de Revogação e Hierarquia previstos
pelo artigo 317 da Constituição, solicitando a revogação da autorização
outorgada ao milho transgênico.
28 de julho de
2003
O Ministério de
Habitação, Ordenamento Territorial e Meio Ambiente (do qual faz parte a DINAMA)
dita uma regulamentação restritiva estabelecendo a obrigação de registro por
parte de quem utilizarão em seus cultivos o milho transgênico, uma zona de
exclusão ecológica para evitar a contaminação por hibridação dos cultivos de
milho natural, a obrigação de estabelecer refúgios nas plantações transgênicas e
outras medidas de caráter defensivo e preventivo.
30 de julho de
2003
La Asociación de
Productores Orgánicos del Uruguay (APODU) presenta ante la justicia una Acción
de Amparo solicitando que se disponga la suspensión de la autorización hasta
tanto se realicen los estudios de impacto ambiental y derivados que establece la
ley. Esta acción se halla actualmente en trámite.
5 de agosto de
2003
Divulga-se a
notícia de que as sementes do milho transgênico estão sendo descarregadas de um
barco no Porto de Montevidéu, e que o Poder Executivo se disporia a ditar uma
resolução deixando sem efeito as medidas de proteção estabelecidas pelo
Ministério de Habitação, Ordenamento Territorial e Meio Ambiente.
Vale a pena
referir alguns fatos complementares, que têm acontecido durante este breve
processo:
Praticamente
todas as associações e grêmios de produtores rurais e agropecuários, assim como
da indústria agro-alimentícia de Uruguai pronunciaram-se energicamente em contra
da autorização ao milho transgênico e a denunciaram como ilegal (transgressora
da lei 17.283), inconstitucional (transgressora do artigo 47 da Carta) e
gravemente inconveniente para os interesses comerciais do país quanto pode
afetar de maneira irreversível a imagem do País Natural e causar impacto em
forma negativa sobre as possibilidades de comercialização de suas carnes, seus
laticínios e seus produtos agrícolas.
A Faculdade
de Agronomia da Universidade da República, a instâncias de seu Decano, produz um
informe científico desaconselhando a introdução do milho transgênico sem a
prévia realização dos estudos científicos de impacto em nível nacional. Assinala,
além disso, que a variedade autorizada contem uma proteína inseticida que ataca
a uma praga que não existe no país, desconhecendo-se os efeitos que pudesse ter
sobre outros insetos benéficos, sobre a alimentação animal, sobre a saúde
humana. Sublinha que não se tem avaliado de nenhuma maneira as possibilidades
de contaminação dos cultivos de milho natural e que no se tem realizado
experiências no âmbito local que permitam determinar se são eficazes ou não com
relação às pragas que sim afetam os cultivos domésticos.
A situação pode
resumir-se assim: contra a opinião da Faculdade de Agronomia (máxima autoridade
acadêmica e científica na matéria), contra a opinião e sob o protesto de todos
os grêmios de produtores agropecuários de certa entidade existentes no país, sem
dar cumprimento aos requisitos estabelecidos pela lei e a Constituição e
autorizou a introdução do milho transgênico MON 810 de
Monsanto.
Não se ouviram
as recomendações da Direção Nacional de Meio Ambiente, que ao menos estabeleciam
algumas restrições, alguns mecanismos de controle e algumas medidas de precaução
e proteção; desconheceu-se à vontade da maioria dos deputados que integram 4 dos
5 partidos existentes no país; no tem se dada resposta aos recursos
constitucionais interpostos. Quando, cumprindo com seu objetivo constitucional e
no exercício de suas competências legais a Ministério de Habitação, Ordenamento
Territorial e Meio Ambiente ditou uma resolução (28 de julho de 2003)
estabelecendo medidas de controle e proteção, o Poder Executivo a deixou sem
efeito.
Cabe então
formular algumas perguntas que, no momento, permanecem sem resposta:
Que valor tem a
lei 17.283 de recente aprovação, se os mecanismos estabelecidos nela são
desconhecidos em forma flagrante e reiterados?
Que significa
para as autoridades nacionais a expressão “Uruguai, País Natural”?
Quais são as
competências reais do Ministério de Habitação, Ordenamento Territorial y Meio
Ambiente se suas recomendações (através da DINAMA) são desconhecidas e suas
resoluções anuladas?
Que valor tem
para o governo as opiniões dos representantes nacionais, dos científicos da
Universidade da República, da unanimidade das organizações que nucleiam os
produtores agropecuários, todas elas convergentes na oposição a uma autorização
apresada e ilegal, não precedida dos estudos prévios imprescindíveis?
Que seguridades
e certezas exorbitantes se outorgaram a
Monsanto e a seus
representantes locais, a ponto de que as sementes chegam ao Porto de Montevidéu
e começa sua descarga quando ainda não pode considerar-se a autorização como
definitiva enquanto os recursos administrativos estão em trâmite e existe
evidentemente uma substantiva diferença de critérios em nível ministerial, que
enfrenta a DINAMA e o MVOTMA com o MPAP e o Presidente da República?
Que interesses
se têm mobilizado para conseguir estes resultados surpreendentes, que vão desde
a infração da Constituição e da lei até a aceleração inaudita da outorga da
autorização e a implementação da mesma “contra vento e mareia”?
A que
compromissos desconhecidos, a que promessas ocultas, a que renúncias
inconfessáveis à soberania nacional respondem a atitude do governo?
Será difícil
encontrar resposta a estas perguntas. Está em trâmite a Ação de Amparo;
novamente, o Poder Judiciário –sua independência, seu equilíbrio, o valor de
seus juízes– se eleva como a última garantia, a linha defensiva de todos os
valores em jogo: a aplicação efetiva da lei e o respeito à Constituição
consideração democrática das opiniões políticas da maioria e dos reclamos dos
sectores sociais diretamente afetados e, no caso, além disso, a defesa de nosso
ambiente e nossa saúde.
Carlos Abin
5 de agosto de
2003
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