Brasil

Día internacional de la salud y la seguridad en el trabajo

Depoimento de Sérgio da Silva,

ex-trabalhador de Nestlé

Isso tem mudado completamente a vida

As Lesões por Esforços Repetitivos (LER), e o contexto socioeconômico no qual ocorrem, são uma completa demonstração do choque entre dois grupos de interesses opostos: por um lado, as empresas - neste caso a fábrica da Nestlé da cidade de Araras, no Estado de São Paulo - que não vacilam em impor condições de trabalho moralmente escravizantes e fisicamente arrasadoras, e por outro lado as/os trabalhadoras/es, vítimas da confiança na ordem social, na imagem que "o lobo" difunde de si mesmo para "melhor nos comer", traídos, prejudicados, mas finalmente organizados para fazer respeitar seus direitos e ajudar a evitar que outros venham a padecer o mesmo que eles.

Unir-se ao mundo das LER implica estar disponível para ampliar o campo da sensibilidade, para dominar a indignação e transformá-la junto com outros em movimento positivo.

 

 

Sérgio da Silva,

34 anos, casado, 3 filhos.

Nascido em Araras

 

 

Trabalhei na Nestlé de maio de 1989 a junho de 2003. Quando entrei, tinha 19 anos e foi a realização de um sonho, porque ouvia falar tão bem da empresa, uma multinacional séria, sólida. Lutei para chegar lá. Comecei como auxiliar, fazendo controle de quantidade de produtos longa vida. Também devia colocar tudo isso dentro de caixas e as caixas em um palete. Depois fui promovido para a seção de empacotamento, onde fiquei um ano, e depois passei para a seção de encaixotamento. Lá, tinha que alimentar a máquina com material de embalagem, como bobinas e fitas. Nessa época, tudo se fazia manualmente, sem nenhuma ajuda mecânica. Não lembro quanto pesavam as bobinas, mas podiam produzir 4,5 mil embalagens laminadas. Também colocava em caixas diversos produtos manualmente. As duas tarefas implicavam esforços repetitivos. Vários anos depois, passei a ser operador da máquina, mas então quase nunca tinha um auxiliar que ajudasse e devia cumprir as duas funções ao mesmo tempo. As embalagens defeituosas deviam ser retiradas da linha e seu conteúdo esvaziado em tambores de 50 litros porque o conteúdo se reciclava. Para essa operação, tinha que bater na embalagem sobre a borda do tambor e mantê-lo apertado para que o conteúdo saísse rapidamente. Enquanto isso, tinha que continuar atendendo a máquina, porque do contrário se desorganizava o trabalho, e os chefes vinham pedir explicações. Por dia, entre 1,2 mil e 1,5 mil embalagens se rompiam. Isso significava outros tantos impactos na mão, no pulso, no braço e no ombro. Tinha que fazer outras coisas na máquina, uma delas era subindo uma pequena escada para fazer uma verificação, mas tinha que fazer isso em frações de segundo. Não podia ficar abaixo de 97% do padrão de produção porque os chefes pressionavam e ameaçavam. Em outras máquinas, tinham reduzido tanto o pessoal que os colegas não davam conta, e espontaneamente nos ajudávamos.

 

Faz uns seis anos, comecei a sentir dor nos braços e nas costas, mas por causa das pressões internas na fábrica, e externas pelo alto desemprego, evitava ir ao médico porque sabia que a empresa não ia aceitar doenças que não tivessem sintomas visíveis. Só a gente sabe quanta dor se sente. Tomava remédios por minha conta, e pouco depois a dor aliviava pelo resto da jornada, mas no dia seguinte tudo recomeçava. No meu setor, tínhamos reuniões quase diárias, algumas em horário de trabalho e outras, não. Não assistir a elas era interpretado como sinônimo de desinteresse pela equipe humana, pelo trabalho. Nas reuniões se pressionava muito pela produtividade, a competitividade no mercado, a qualidade, e sempre se chegava ao mesmo ponto: “Se não estão dispostos a manter o esforço, a rua está cheia de pessoas que matariam para trabalhar na Nestlé”. Isso entra na cabeça, a gente pensa na família, nos filhos, e se diz que tem que fazer qualquer coisa para não perder o emprego, inclusive seguir trabalhando com dor. E assim foi passando o tempo, até que chegou o momento em que foi impossível suportar a dor. Fui a um médico fora do horário de trabalho e levei as radiografias que tinha da coluna vertebral. Expliquei-lhe que a dor na coluna corria até os ombros, e que quando, na pausa do trabalho, ia para a sala de leitura, não conseguia levantar o jornal porque meus braços doíam. Pedi para fazer uma ecografia, porque nunca tive dores tão fortes. Mas o médico já tinha visto funcionários da Nestlé com o mesmo problema, e, como todos, em vez de uma ecografia, pediu outra radiografia e uma análise de ácido úrico no sangue. Fiz tudo o que mandou e ele me receitou dois remédios para tomar todos os dias. Um deles tinha algo que me afetava os intestinos, mas continuei a trabalhar. Numa quinta-feira, decidi ir ao médico em vez de ir para a fábrica. Contei o que estava acontecendo, e ele disse que diminuísse a dose, mas nada de ecografia nem de fisioterapia. Deu licença médica por dois dias, quinta e sexta-feiras, mas pedi também o sábado porque não me sentia bem e queria realmente me recuperar. Além disso, a partir da segunda-feira da semana seguinte entraria de férias e me parecia melhor dar um descanso contínuo ao corpo. Ele respondeu que por causa de uma solicitação da empresa, ele ou qualquer outro médico de Araras com convênio com a Nestlé não podiam dar mais de dois dias de licença médica e que ia me encaminhar para um médico da Nestlé para que ele decidisse. No dia seguinte, fui à empresa, vi o médico, que também não podia me dar mais um dia e me mandou de volta para o médico anterior. E me explicou que um dos chefes, chamado Leandro, tinha convocado todos os médicos para dar aquela indicação: não mais de dois dias de licença por doença. Decidi falar com o chefe do meu setor, a quem expliquei a situação, e ele concordou comigo que podia ficar em casa. Durante as férias, consegui que outro médico me prescrevesse dez sessões de fisioterapia que só melhoraram parcialmente minhas dores. Na minha volta, tinham me designado para outro setor de trabalho, onde estive uma semana descarregando caminhões com açúcar. Senti muita dor, mas consegui terminar a semana. Depois voltei para o meu setor de sempre, mas apenas dois dias depois me chamaram para falar com um dos chefes, que me perguntou o que era essa briga que eu tinha armado e que tinha chegado até o departamento de pessoal. Respondi que não tinha nenhuma briga e contei os fatos como agora e acrescentei que, da minha parte, tinha feito tudo segundo as regras, como sempre tinha feito na empresa. Era o mesmo chefe que tinha me autorizado a faltar no sábado. Sem falar mais nada abriu uma gaveta da sua mesa, tirou um envelope e me deu dizendo: “Viu, agora o que ganhaste foi a demissão”.

 

Não posso admitir que a gente tenha que trabalhar doente, que só tenha que abaixar a cabeça, ficar em silêncio. Não assinei minha demissão, ele chamou duas testemunhas que assinaram no meu lugar e já estava tudo armado.

 

Eu achava que me aposentaria trabalhando nessa empresa, pelo menos que chegaria a ser alguém ali dentro, sempre fiz tudo bem, mas num abrir e fechar de olhos tinham me despedido.

 

Antes de chegar em casa, passei pelo médico que tinha me receitado a fisioterapia e pedi uma ecografia, e nesse mesmo dia tinha o diagnóstico de tendinopatia nos ombros. Com esse resultado, retornei ao doutor anterior para mostrar que por ter se negado a me dar mais um dia de descanso tinham me despedido. Infelizmente, me respondeu que ele também é funcionário da Nestlé porque depende do convênio com a empresa.

 

Fiquei sabendo imediatamente da existência de médicos em Sorocaba que nos tratavam com dignidade. Rapidamente tive um diagnóstico de LER, e me deram um encaminhamento para o INSS, onde outro médico me deu o benefício do auxílio-doença.

 

Atualmente continuo com o benefício, fazendo fisioterapia, e neste mesmo momento em que estamos conversando sinto bastante dor porque quando os dias são úmidos, como hoje, a dor é mais intensa.

 

Sei que vou ter muitas dificuldades para conseguir um novo emprego, porque em qualquer empresa tenho que passar pelos três meses de experiência, e aí tem que se matar para conseguir a vaga. Mas o problema é que não vou poder fazer isso, porque não tenho condições físicas, e se o faço usando medicamentos, então agravarei minha doença. Tenho apresentado esse problema a todos aqueles que conheço, e ninguém pode resolvê-lo. De fato, acho que já não poderei trabalhar.

 

Muitas vezes, sinto desejo de sair para passear com meu filho caçula, que tem um ano e meio, mas não podemos pegá-lo nos braços porque minha mulher, ex-empregada da Nestlé, também tem LER. E se nos esforçamos e o fazemos, há pessoas que nos acusam de estar fingindo a doença, de ser uns sem-vergonhas. Tudo isto afeta muito emocionalmente, a gente tende ao isolamento, diminui o diálogo, estamos mais sensíveis e propensos a discussões. Ficamos em casa, mas também lá não podemos fazer grande coisa, não posso arrumar uma cortina, limpar, arrumar o jardim... temos que pagar para tudo. Então se somam dificuldades econômicas. A convivência torna-se problemática. Até há momentos em que a gente pensa em fazer alguma estupidez.

 

Neste ponto Sérgio não conseguiu continuar falando de si mesmo. Vinte minutos depois conseguimos começar a conversar sobre o caso da sua esposa.

 

Maria também é funcionária da Nestlé desde 1986, onde sempre trabalhou na seção de estamparia, que é uma loucura pela intensidade da tarefa. Sempre chegava em casa cansada, nervosa, obcecada por alcançar os padrões de produtividade. Em meados de 1996, sentia tanta dor que não podia continuar trabalhando. Fez alguns exames e foi diagnosticado que tinha LER. Nessa época ninguém conhecia ainda a doença. O doutor Elder, médico da empresa, mandou que ela tomasse vários medicamentos e disse que podia continuar a trabalhar. Havia noites nas quais Maria chorava de dor nos braços e nos ombros. Assim e apesar de tudo, o tempo foi passando até que não agüentou mais, e por recomendação do médico foi dada a ela outra tarefa nos escritórios. Mas depois de um tempo, quiseram que voltasse para a máquina, também por pressão de alguns colegas que invejavam sua situação, achando que ela não estava doente. Durante muito tempo sofreu perseguição de alguns chefes, até que, em fevereiro de 2001, foi demitida sem prévio aviso. Mas ela tinha consulta com o ginecologista nesses dias porque estava com a menstruação atrasada. O médico constatou que estava grávida. Maria voltou para a empresa, disse que estava grávida, e quando viram que tinham cometido um duplo erro, porque a despediram estando em tratamento por LER e, além disso, grávida, a reintegraram. Desde então esteve em licença-maternidade e depois por LER. Em dezembro de 2003, devia passar por uma perícia no INSS, mas os médicos estavam em greve. Assim, não sabemos tampouco o que vai acontecer com ela.

 

Tudo isso fez com que Maria mudasse completamente. Ela era uma mulher que estava sempre contente, e agora...

 

Estremecido, emocionado, Sérgio não pôde continuar a falar de sua vida, de sua esposa, de seus filhos.

 

 

Carlos Amorín

Depoimento tomado do livro “Massacre Silencioso”

Produzido e editado pela Rel-UITA

28 de abril de 2006

 

Ilustrações: Álvaro Santos

 

  

 

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