Brasil
Lesões e dor no Rio Grande do Sul |
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“A paciente está muito
limitada por suas patologias, suas lesões já sendo crônicas e muito
evoluídas... O quadro é irreversível, mesmo com conduta cirúrgica... Há
comprovada tenossinovite de punho/mão. A paciente também tem síndrome do
túnel do carpo bilateral, grave à direita com comprometimento sensitivo e
motor, comprovado por eletroneuromiografia recente. A clínica é também
compatível com bursite e tendinite de ombro direito com quadro de dor
constante... Considero que não apresenta condições de exercer a atividade
laborativa normal, o que agravaria ainda mais suas lesões, tendo
incapacidade definitiva”.
Enquanto lia e fotografava o laudo médico de dona Sara Odete Plach, ex-funcionária
da multinacional norte-americana Osi Group, controladora da Penasul, dona de
indústrias avícolas nas cidades de Roca Sales e Garibaldi, no interior
gaúcho, tentava entender a dimensão daquela história, tão pouco individual
quanto corriqueira, como comprovaria posteriormente. Começava o meu mergulho
de quatro dias num universo ainda pouco conhecido e extremamente nebuloso: o
dos impactos perversos da intensidade do ritmo de trabalho nos frigoríficos
avícolas.
TERROR - A equação é tétrica e fulminante: para aumentar a produção
sem maiores gastos com pessoal ou investimentos de monta, acelera-se o ritmo
das nórias, a corrente transportadora que carrega o frango até o trabalhador.
As enfermidades vão nascendo, como aleijões, do acompanhamento desse ritmo
alucinado. De olho neste gordo e lucrativo mercado, cantado em verso e prosa
como exemplo de caminho a ser seguido pelos demais setores da economia, as
multinacionais começam a nadar de braçada, desnacionalizando a galinha dos
ovos de ouro. Só para citar a evolução dos tentáculos do capital
transnacional, a mastodôntica norte-americana Cargill saltou no ranking das
maiores empresas no Brasil da 14ª para a 11ª colocação.
FREIO - Para pôr um freio aos abusos nas indústrias avícolas,
esclarece o presidente nacional da CUT, João Felício, a representação
sindical defende uma norma que regule a velocidade das nórias; horário
reduzido no setor para seis horas diárias; rodízio nas funções, com vistas a
reduzir os movimentos repetitivos; redução do ritmo de trabalho e o
reconhecimento pelo INSS de que as lesões causadas pelos movimentos são uma
doença profissional do setor. Essas reivindicações constam na Agenda do
Trabalhador, entregue pela central ao Congresso Nacional e ao executivo.
CRESCIMENTO - “A exportação aumentou dez vezes nos últimos dez anos,
enquanto as fábricas mantiveram o mesmo tamanho do seu espaço físico. Apesar
da introdução dos trabalhos de turno que fazem a fábrica produzir 24 horas,
o número de trabalhadores não aumentou proporcionalmente ao enorme
crescimento da produção”, denuncia o presidente da Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Alimentação (Contac/CUT), Siderlei Oliveira.
CARTEIRA - Como que imantados pela perspectiva da carteira assinada,
do serviço e do salário que independe do sol e da chuva, muitos
trabalhadores rurais, como Sara, acorrem “às lanternas da cidade, que
deslumbram os olhos da china”, enterrando de vez a sorte de muitos campeiros.
Ex-funcionária da Penasul/Osi Group, Sara paga o preço da ânsia do lucro
fácil e certeiro, da disputa empresarial pelo crescimento vertiginoso das
exportações de frango, alavancadas ainda mais recentemente pela gripe
aviária. Como um nome que salta por detrás dos números frios das
estatísticas, Sara agora virou notícia.
Numa parte “européia” do interior gaúcho, inebriado pela febre do progresso
econômico, das construções que começam a brotar nas encostas das serras, do
dinheiro aquecendo o comércio, a indústria e as esperanças, se multiplica um
ônus que liquida qualquer bônus: lesões por esforço repetitivo, dores
extremas e casos e mais casos de depressão.
Siderlei de Oliveira |
TRISTEZA - Siderlei Oliveira: "É preciso pôr fim à superexploração"
caída ao lado da canastra que equilibra em suas pernas, Sara sorri com a
destreza ainda mantida na mão esquerda. Fala de seu falecido pai, que perdeu
um braço, amputado na colheita agrícola, e que a força da recordação lhe dá
energia para tocar a vida em frente, segurando a onda dos três filhos
menores. O peso dos anos desembarcou em Sara como uma cobrança de aluguel à
beira do despejo, implacável e cruel. Os 41 anos parecem muitos e muitos.
Diante do fardo de vagens de feijão, e da pequena filha de apenas seis anos,
Sara diz ao mundo que resiste e insiste, como a música: “garra de garça pra
enfeitar a primavera, garra de fera pra lutar a vida inteira”.
Como os adolescentes, a filhinha ajuda como pode. Olha a câmera da TVCUT e
ri, solta. Exibe sua felicidade e cativa...
Sara é uma das tantas vitímas da máquina de moer carne que se transformou a
indústria avícola no Brasil, maior exportador do mundo na atualidade.
Funcionária da multinacional Penasul, Sara foi aposentada por invalidez.
Após muita briga da Contac, ela recebe hoje R$ 434,94 do auxílio-doença.
Como a empresa não emitiu Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), Sara se
limita a ganhar 80% do montante a que teria direito por lei caso a
multinacional tivesse registrado o caso como seguro acidente, que pagaria a
integralidade do salário. Já que a lei mantém alíquotas diferenciadas de
cobrança para o financiamento da aposentadoria especial, que podem ser
reduzidas ou aumentadas em função da variação dos índices de acidentes, a
regra é a sonegação de informações. A comunicação é a exceção.
“CHEIRO DE ROÇA” - Numa das inúmeras tentativas, conta Sara, após um
ano afastada da empresa, com o dinheiro bloqueado, sem recursos para a
condução, caminhou quilômetros com sua filhinha entre Roca Sales e
Encantado, na luta para voltar a receber. O perito reclamou de seu “cheiro
de roça” e solicitou mais exames, como se a angustiada mãe fosse uma
criminosa. “A senhora está trabalhando, como quer dinheiro do INSS?” Foi
mandada de volta para a empresa, onde, sem condições de trabalhar, precisou
buscar a contragosto a Justiça. Diferente dos engravatados banqueiros,
embalados pelos juros altos e pelo superávit primário, Sara queria mesmo era
continuar dando duro, sendo produtiva.
“Fazer o quê, né? O negócio é eu ficar encostada mesmo”. É como se diz no
Rio Grande para quem fica dependendo da Previdência. Mas Sara sabe que,
infelizmente, não está só nos seus problemas, e quer fazer ecoar o seu
grito, que é de milhares. Por isso ela vai aparecer na televisão nos
próximos dias e até viajará a Brasília, onde ao lado de outras mulheres
incapacitadas visitará uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados para
contar um pouquinho do muito que tem visto e vivido. Apesar da dor e da
doença que se expande, Sara está confiante de que a dor, a angústia e a
revolta que lhe consomem servirão como alerta. Afinal, já basta!
Leonardo Wexell Severo
CUT
20 de dezembro de 2005
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