Antes de você
acabe de ler esta página, uma pessoa poderá ter sido vítima de um acidente
de trabalho, que no Brasil atinge meio milhão de pessoas por ano e mata
quase 3 mil
O trabalho
dignifica, diz o bordão, mas também danifica. Quando você tiver acabado de
ler este parágrafo, alguém pode ter sido vítima da própria atividade
profissional. O meio milhão de acidentes de trabalho ou no trajeto
registrados no Brasil corresponde à média de uma ocorrência por
minuto. Os afastamentos por incapacidade temporária superiores a 15 dias
atingem 155 mil trabalhadores; outros 13,6 mil não conseguem mais voltar à
atividade. Os dados, do INSS, são de 2005 e representam um aumento de
5,6% em relação ao ano anterior, no que se refere ao total de acidentes.
Neste
instante, pessoas podem estar sendo mutiladas, soterradas, levando choques
de alta voltagem, caindo de andaimes, sentindo dores intensas nos braços e
ombros ou, literalmente, morrendo de cansaço num canavial. O aumento da
produção dos álcoois anidro e hidratado tem gerado fabulosos lucros para os
usineiros – alguns deles heróis, segundo o presidente. O setor é o terceiro
em exportações do agronegócio.
Mas tem
provocado doenças e mortes entre os trabalhadores. Em 2004 o agente da
Pastoral dos Migrantes Jadir Ribeiro denunciou a morte de três
cortadores de cana em usinas paulistas. Em 2005 mais dez mortes foram
registradas: todas depois de fortes dores de cabeça, cãibras, desmaios e
parada cardiorrespiratória. A causa: esforço excessivo, “birola”, entre os
trabalhadores da região.
De acordo
com relatório do Núcleo de Estudos da Reforma Agrária (Nera) do Departamento
de Geografia da Universidade Estadual Paulista, os trabalhadores estão
submetidos a condições precárias: “Desferem intensos golpes com o facão,
exigindo-lhes um movimento do corpo todo. (...) O trabalhador que corta em
média 10 toneladas de cana por dia desfere cerca de 9.700 golpes de facão, o
que, muitas vezes, provoca acidentes como cortes profundos nos dedos, lesões
por movimentos repetitivos, graves problemas na coluna. (...) Os corpos
ficam desidratados; no entanto, além de não disporem de água fresca no eito
– como exige a lei –, mal podem interromper a atividade para descanso, uma
vez que isso prejudicaria o rendimento do trabalho”.
Numa
audiência presidida pelo procurador geral da República de São Paulo dos
Direitos do Cidadão, Sérgio Gardenghi Suyama, foi realizada uma
visita ao alojamento da usina Bonfim, na cidade de Guariba, onde se
constatou que “as condições do alojamento se aproximam à de uma prisão.
(...) O turno de trabalho começa às 5h30, sem hora prevista para terminar.
(...) Os trabalhadores chegam a cortar até 600 metros de cana por dia, o
equivalente a 30 reais diários”.
Sonhos perdidos
No meio
urbano, a situação também é preocupante. Segundo o documento Trabalho
Decente – Trabalho Seguro, da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
cerca de 5 mil pessoas morrem diariamente no mundo vitimadas por acidentes
ou doenças de trabalho. No Brasil, as mortes atingiram 2.708 pessoas
em 2005, com redução de 4,6% em relação ao ano anterior.
Claudinei
dos Santos Ferreira
é um rosto dessa estatística. Aos 28 anos, responde lacônico à pergunta
sobre o que espera do futuro: “Nada”. Ele viu seu destino mudar na tarde de
29 de março de 2004, quatro anos depois de ter começado a trabalhar em uma
indústria de móveis em Poá (SP). “O encarregado me colocou em uma
serra que eu não conhecia”, explica. Perdeu, além dos quatro dedos da mão
direita, sonhos. “Eu gostava de desenhar, queria ser arquiteto”, relembra o
trabalhador, que cursou até a 7ª série.
Recebe 585
reais do INSS. Paga aluguel, a pensão da ex-mulher e pouco sobra para
sustentar os filhos de 2, 5 e 7 anos com a atual companheira, grávida de 8
meses. Complementa o orçamento vendendo DVDs nas ruas da cidade. Em breve
ele passará por perícia para avaliar se, com apenas um dedo na mão direita,
pode retornar ao trabalho. Caso tenha alta, Claudinei volta para a
empresa com estabilidade de um ano. Depois, sua vida é uma incógnita: “Meu
futuro acabou. De vez em quando ainda sinto os dedos, mas sei que eles não
estão aí”.
O número de
acidentes no Brasil vem caindo ao longo das décadas, mas ainda é
alarmante e muitos questionam sua veracidade. Segundo o INSS, nos
anos 1970, para uma população de 12,4 milhões de trabalhadores, foram
registrados 1,57 milhão de acidentes; esse número passou para 1,1 milhão na
década seguinte, para um contingente de 21 milhões de trabalhadores, e caiu
para 470 mil nos anos 1990.
Entre os
ramos mais afetados por acidentes encontra-se o da construção civil. Para
Waldemar de Oliveira, presidente da Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Indústria de Construção e Madeira (Conticom-CUT), o
alto grau de informalidade no segmento é uma prova de que os números do
INSS são subdimensionados: “Os próprios empresários admitem que a
informalidade atinge mais de 70% da categoria, isso nos leva a acreditar que
a subnotificação é grande e o problema, muito maior”.
Cuidados com a pressão
Há dois
anos, quando o pedreiro Benedito de Fátima Sant’Ana trabalhava na
obra de um posto de gasolina em Santa Isabel (SP), próximo a
Guarulhos, um deslocamento de terra o deixou soterrado por cerca de uma
hora. “Desmaiei e só fui acordar quando os bombeiros me resgataram”, conta.
Levado de helicóptero para o Hospital Santa Marcelina, em São Paulo,
Benedito berrava de dor e pronunciava todos os palavrões que seus 20
anos de peão, e 44 de vida, ensinaram. Sofreu fraturas múltiplas nas pernas
e nos quadris, ficou de cama por mais de um ano. Ainda se movimenta com
dificuldade, apoiado em muletas, mas já consegue subir os 42 degraus que
separam da rua sua casa de três cômodos.
Sem o
registro na carteira de trabalho, Benedito não podia ser atendido
pelo INSS. Pressionado pelo Sindicato da Construção Civil de
Guarulhos, o empregador efetuou o registro retroativo e recolheu os encargos
devidos. “Muitos operários até hoje não sabem ao certo para que serve um
sindicato e, infelizmente, só descobrem nessas horas a importância de ter
uma entidade para representá-los”, afirma Edmilson Girão, presidente da
entidade. “Eles me ajudaram em tudo”, diz Benedito, que afirma ter
nascido de novo.
Muitas são
as causas de acidentes na construção civil. A Norma Regulamentadora (NR)
nº 18 define diretrizes administrativas para evitá-las. Para Jófilo
Moreira Lima, técnico da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de
Segurança e Medicina no Trabalho (Fundacentro), órgão vinculado ao
Ministério do Trabalho e Emprego, a implantação ainda que parcial da NR-18
tem contribuído para a queda no número de acidentes na construção. “Para
prevenir um acidente é necessário atuar em todo o processo, desde o
planejamento até a execução final de uma obra”, afirma. Segundo ele, um
importante trabalho tem sido desenvolvido pelo Comitê Permanente Nacional,
órgão que reúne representantes do governo, dos empresários e trabalhadores
na busca de sugestões e soluções para as situações de risco.
“A NR-18
traz avanços significativos, mas muita coisa ainda está só no papel. Também
temos problemas em relação à fiscalização, porque quando detectamos uma
irregularidade em uma obra, se o fiscal não agir com rapidez, pode acontecer
de aquele trabalho já ter terminado”, diz Luiz Carlos de Queiroz, do
Sindicato dos Trabalhadores da Construção de Suzano.
O operador
de máquina Eriton Batista de Oliveira exerce a profissão há cerca de
dez anos. Sua experiência em obras não bastou, no entanto, para evitar a
queda de uma máquina (calandra) que lhe fraturaria um dedo e deceparia a
ponta de outro. “Nunca tinha trabalhado naquela máquina, falei pro meu chefe
que era complicado, mas ele disse que o cliente queria o pedido para o dia
seguinte... Por sorte consegui travar a máquina com a outra mão”, conta ele,
exibindo a mão enfaixada. “Tentamos conscientizar os trabalhadores dos
riscos de acidentes, mas sabemos da pressão que os patrões fazem”, explica
Antonio Telles, diretor do Sindicato da Construção Civil de
Guarulhos.
O Sindicato
dos Químicos e Plásticos de São Paulo há anos tenta incluir nos acordos
coletivos cláusulas de saúde e segurança com o objetivo de buscar anular os
principais fatores que levam a acidentes e doenças, das condições dos
equipamentos de trabalho à pressão por produtividade. O diretor Lourival
Batista Pereira destaca como um dos marcos o acordo feito com o setor
plástico para as prensas injetoras. “Em 1995 firmamos o primeiro acordo com
o sindicato patronal sobre prensas injetoras. Renovado a cada dois anos, ele
garantiu uma significativa queda no número de acidentes”, avalia. “Este ano
estamos negociando a extensão do acordo para fechar todo o ciclo da
produção.”
Lourival
considera o setor plástico mais suscetível às negociações que o ramo
químico. No ano passado o sindicato registrou oito mortes em sua base,
quatro em uma única fábrica, a Cromeação Xavier, por vazamento de um produto
tóxico.
Guerra invisível
Até
serviços aparentemente seguros escondem armadilhas. Maria Bernadete Sousa
era passadeira em uma empresa de confecções. Trabalhava em uma mesa a
vapor, com três pedais e um ferro de passar que pesava seis quilos. “Chegava
a passar 800 peças por dia, tinha dois minutos para cada peça e trabalhava
por produção; começava às 6 horas e ia às vezes até as 22”, conta. Após dois
anos nesse ritmo, as dores na perna direita e no antebraço se tornaram
insuportáveis. Os médicos diagnosticaram bursite e lesão grave no joelho.
“Fiz a primeira cirurgia no dia 10 de junho de 2004; dois meses depois
precisei operar novamente porque a perna ficou sem dobrar.” Bernadete
foi aposentada pelo INSS, mas terá de conviver com uma prótese no
joelho e com a rotina de hospitais por pelo menos mais dez anos.
Se a
desinformação engana, a falta de proteção pode ser fatal. Empregado do setor
de higienização do frigorífico da Seara/Cargill de Sidrolândia (MS),
Marcos Antônio Pedro, indígena de 29 anos e pai de três filhos, é a
mais nova vítima de acidente fatal de trabalho na multinacional
norte-americana. Na manhã do dia 28 de março Marcos caiu dentro de um
tanque de resfriamento de frangos (chiller). De acordo com o vice-presidente
do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Alimentação de Sidrolândia,
Clodoaldo Fernandes Alves, Marcos estava fazendo checagem de
resíduos do chiller quando caiu e começou a ser sugado pela espiral que puxa
os frangos para a água. “Os mecânicos queriam cortar o tanque e tirá-lo por
baixo. O controle de qualidade da empresa determinou que se invertesse o
movimento de rotação das espirais. Não deu certo”, relata.
“Precisamos
adotar ações mais unificadas e de âmbito nacional para ter um diagnóstico de
todos os riscos que envolvem os ramos produtivos”, afirma Remigio
Todeschini, presidente da Fundacentro. Ele defende, por parte do IBGE,
a incorporação de questões sobre o tema e, por parte do governo, uma atuação
além da formalidade para buscar informações que permitam agir em todos os
ambientes de trabalho.
Segundo
dados do Relatório Anual de Informações Sociais (Rais) do ministério, o país
conta com 5.174 engenheiros de segurança, 6.640 médicos do trabalho e 38.253
técnicos de segurança. “Isso dá uma média de um profissional para cada 553
trabalhadores, é muito pouco”, avalia Todeschini, para quem os cursos
profissionalizantes do país deveriam ter a disciplina de saúde e segurança.
“Se isso acontecesse, a pessoa entraria no mercado de trabalho mais ciente
de seus direitos, de como se proteger. Ajudaria muito, desde o trabalho das
Cipas até na formulação de acordos coletivos”, complementa.
O governo
gasta cerca de 4 bilhões de reais por ano com pagamento de benefícios
acidentários, valor que poderia diminuir muito à medida que ações
preventivas fossem adotadas. Mas pior que a perda de recursos são vidas
danificadas. Todos os dias Bernadetes, Claudineis e Beneditos deixam parte
delas nas engrenagens de um sistema em que o lucro é mais valioso que o ser
humano. As soluções não são individuais. Dependem de a sociedade não aceitar
passivamente as destruições promovidas por essa guerra invisível.
Para
lembrar
Em 28 de
abril de 1969 a explosão de uma mina no estado da Virgínia (Estados
Unidos) matou 78 trabalhadores. A tragédia marca a data como o Dia
Mundial em Memória às Vítimas de Acidentes do Trabalho. Em 2003 a OIT
adotou o 28 de abril como o dia oficial da segurança e saúde nos locais de
trabalho. Em maio de 2005, no Brasil, a data foi instituída
nacionalmente pela Lei nº 11.121/2005, do então deputado federal Roberto
Gouveia (PT-SP). A causa é lembrada todo ano, no país, por
eventos e manifestações organizados por entidades sindicais e ligadas ao
mundo do trabalho.
Responsabilidade social?
É Valdirene
João Gonçalves da Silva
quem conta: “Quando entrei na empresa, desossava duas coxas e meia por
minuto. Com o passar dos anos, o número foi aumentando, assim como o de
colegas com lesão. Há cinco anos comecei a sentir tremores, um repuxo no
braço. O médico dizia que era dor muscular. Até eu sentir que o braço estava
podre pelo esforço repetitivo. Todos os meus colegas reclamam e têm medo de
ir atrás porque a empresa costuma mandar embora”.
Quando a
funcionária afirmou que não tinha condições, que necessitava de tratamento
médico, os patrões propuseram afastamento por auxílio-doença, em vez de
acidente de trabalho. “Assim a empresa perde menos”, teria sido o argumento.
“Fui levada a outro médico. De lá pra cá já foram inúmeras anestesias
gerais, cirurgia de nervo, infiltração, tudo sem resultado. Entrei no
tratamento com três dedos paralisados e hoje estou sem movimentar os cinco
dedos. Além disso, o punho está afetado, encostado no antebraço. A dor é
constante, não tem remédio que alivie. Só levanto para tomar banho e ir ao
banheiro porque a morfina me dá uma parada.”
Valdirene,
inválida aos 35 anos, pesa 45 quilos. Para ajudá-la, o marido e as duas
filhas revezam-se em casa. Alimenta-se de água e bolacha, pois tudo o que
come “volta”. Seu rosto está em panfletos, cartazes e outdoors em
Forquilinha (SC). A estampa rasga, segundo ela, qualquer fantasia de
responsabilidade social da multinacional norte-americana Cargill.
Após a aquisição da fábrica da Seara na cidade, o complexo que possui
1.100 fábricas em 61 países e faturamento superior a 70 bilhões de dólares
vem imprimindo um ritmo de produção que tem multiplicado acidentes de
trabalho entre seus 2.300 empregados. Desossadora de frango, funcionária
exemplar, sem uma única falta durante 11 anos na mesma unidade, Valdirene
enfrenta uma luta tenaz para que a empresa assuma a responsabilidade pela
sua enfermidade e garanta o tratamento. No dia 15 de março, três meses
depois de ter realizado vários exames para uma possível cirurgia no cérebro
que lhe devolva o movimento do braço esquerdo, a direção comunicou que se
responsabilizará pela operação, que pode custar 300 mil reais. A decisão
veio depois que o sindicato dos trabalhadores da alimentação local organizou
manifestações e o caso ganhou repercussão nacional.
Prevenção:
alguns avanços
A
regulamentação da nova lei que trata do Nexo Técnico Epidemiológico (NTE)
e do Fator Acidentário de Prevenção (FAP) traz alguns avanços
reclamados há muitos anos por sindicatos e movimentos de saúde dos
trabalhadores. O assunto foi abordado na edição de outubro da Revista do
Brasil – www.revistadobrasil.net/rdb5/trabalho.htm.
A lei dá
como caracterizada a incapacidade acidentária quando estabelecida a ligação
entre o trabalho e o dano à saúde do empregado, “decorrente da relação entre
a atividade da empresa e a entidade mórbida motivadora da incapacidade”. É
transferida para o empregador a necessidade de comprovar que não foi seu
ambiente de trabalho o que determinou a doença ou incapacitação do
funcionário.
O FAP
modifica as alíquotas. Atualmente, as empresas recolhem para a seguridade
social de 1% a 3% de sua folha de pagamentos, conforme o risco da atividade.
O grau de risco será determinado pelo número e pelas características das
ocorrências registradas. A alíquota deve aumentar para 2% a 6%, nas
atividades mais inseguras, e diminuir para 0,5% a 1,5% onde houver menos
acidentes e doenças. O trabalhador e os sindicatos devem estar sintonizados
para combater a subnotificação.
Norian
Segatto e Leonardo Severo
Tomado de
Revista do Brasil
15 de
junho de 2007