Devido a sua condição de republicano radical
e a que sua recém fundada família era uma mistura de raças,
seu irmão -conseqüente com as opiniões da sociedade texana
de então- obrigou Alberto a abandonar o Estado. Com seus
escassos pertences os esposos Parsons se trasladaram a
Chicago em 1873. Lucia abriu uma pequena loja de roupa para
ajudar na economia do lar e Alberto começou a trabalhar numa
gráfica.
É possível imaginar como ambos se
influenciaram mutuamente nas suas idéias sociais e como pela
sua vez Chicago influiu neles.
Um escritor descreveu a Chicago de então como
“Um cobertor esmagador de fumaça; ruas cheias de pessoas
ocupadas, em rápido movimento; um grande agregado de vias
ferroviárias, barcos e trânsito de todo tipo; uma dedicação
primordial ao Dólar Todo-poderoso”. Chicago era uma cidade
de “estrangeiros”, arrastados pelo sistema mundial de
acumulação capitalista à periferia de uma cidade industrial
onde já havia começado a gestação dos acontecimentos de
1886. Durante o inverno de 1872, milhares de pessoas
famintas e sem lar por causa do Grande Incêndio, realizaram
manifestações pedindo ajuda. Muitas delas levavam cartazes
proclamando “pão ou sangue”. Receberam sangue: corridos ao
túnel sob o rio Chicago, foram baleados e golpeados. Em
1877, uma onda de greves se estendeu pelas redes
ferroviárias alcançando a Chicago, e as assembléias
operárias eram dissolvidas pela polícia a balaços.
A burguesia industrial de Chicago gozava de
uma merecida fama de selvageria e o Departamento de Polícia
atuava como uma força privada a seu serviço. A maioria dos
policiais, além do pagamento que recebiam do município,
percebia dinheiro das organizações patronais e tinham
assumido que todo grevista era um agente estrangeiro ao
serviço do anarquismo ou do socialismo. A imprensa oficial
aguçava o ódio. Num artigo do Chicago Tribune do 23 de
novembro de 1875 se expressava: “Todos os postes de luz de
Chicago serão decorados com o esqueleto de um socialista, se
é necessário, para evitar que se propague o incêndio e para
prevenir qualquer tentativa subversiva”. O terror que poucos
anos antes tinha despertado a Comuna de Paris entre a
burguesia seguia vigente entre os industriais de Chicago.
Lucia, que tinha qualidades de organizadora,
se apaixonou pela leitura e em 1878 começou a redigir
artigos sobre diversos temas, entre outros sobre os
sem-teto, os desempregados, os vagabundos, os veteranos da
Guerra Civil e sobre o papel da mulher na construção do
socialismo. Também contribuiu a formar a União de Mulheres
Trabalhadoras de Chicago, a mesma que em 1882 Os Cavalheiros
do Trabalho reconheceram e somaram a suas fileiras (nesses
anos não se permitia a militância de mulheres nas
organizações). Alem disso, participou na fundação da
International Workin People's Asociation (IWPA), de idéias
anarquistas, que promovia a ação direta contra os
capitalistas.
Em 1885, em plena efervescência pela jornada
de oito horas, foi muito ativa na organização das
costureiras da indústria de grãos (sweat-shops). Colaborava
com artigos para o jornal O Alarme que editava seu esposo.
Numa coluna publicada o 3 de abril de 1886, denunciou que os
negros eram vítimas só porque eram pobres, sustentando que o
racismo desapareceria inevitavelmente com a destruição do
capitalismo.
Maio
de 1886
O 1o de maio de 1886, levando da
mão a seus pequenos filhos (Lulu de oito anos e Albertinho
de sete) Lucia e Alberto caminhavam para o lugar do comício
repetindo a consigna que estava na boca de milhares de
trabalhadores e trabalhadoras: “não queremos trabalhar mais
de oito horas”. O mesmo dia, o Chicago Mail advertia no seu
editorial: “Há dois rufiões perigosos que andam em liberdade
nesta cidade; dois covardes que se ocultam e que estão
tratando de criar dificuldades. Um deles se chama Parsons, o
outro Spies. Assinalem-nos hoje. Mantenham-nos à vista.
Indiquem-nos como pessoalmente responsáveis de qualquer
dificuldade que ocorrer. Façam um escarmento
realmente exemplar com eles se de verdade se produzem
dificuldades”. Estavam condenados de antemão. Mas aquele 1o
de maio acabou sem incidentes.
O 4 de maio se realizou um comício na Praça
Haymarket para protestar pela repressão policial, que tinha
vitimado seis vidas operárias na frente da fábrica Mc Cormik
quando uma bomba matou o policial Degan. Lucia e Alberto,
depois que este falara no comício, se encontravam junto de
seus filhos no Salão Zept' s, o que demonstra que nada
tiveram a ver com aquela bomba, pelo qual se condenou a quem
depois se converteriam nos Mártires de Chicago ao morrer na
forca ou purgar longas condenações na prisão.
Parsons, convencido de que seria culpado,
conseguiu fugir no meio da confusão, e dias mais tarde,
depois discutir o assunto com Lucia, decidiu apresentar-se.
Subitamente apareceu perante da Corte exclamando: “Nossas
Honorabilidades, tenho vindo para que se me processe junto
de todos meus inocentes companheiros”. A burla que
significou aquela paródia de juízo é conhecida, mas
consignemos que Lucia não se resignou. Acompanhada pelos
seus filhos percorreu todo o país durante quase um ano.
Dirigiu-se a mais de 200 mil pessoas em 16 estados, falando
de noite e viajando de dia. Escreveu centenas de cartas a
sindicatos e diferentes autoridades, tanto dos Estados
Unidos como de todo o mundo.
Quando o 9 de outubro de 1886 se proclamou a
sentença de morte Lucia estava na sala, apertou seu punho
contra o rosto e não quis derramar lágrimas frente aos
algozes, transformada “na mulata que não chora” de Martí.
Tomou os cordões de uma cortina, os amarrou como o nó de uma
forca e os lançou pela janela. Era uma última e desesperada
tentativa para que os trabalhadores reunidos frente ao
tribunal reagissem. Quando um apressado jornalista abandonou
a Corte para dirigir-se para sua redação, a
multidão o interrogou: qual é o veredicto?
Culpáveis! A praça se encheu de vaias e quando saiu o
patético juiz, o saudaram.
Pouco antes que o enforcassem, Alberto
escrevia: “A minha pobre e querida esposa: Tu es uma mulher
do povo e ao povo te lego. Devo fazer-te um pedido: não
cometas nenhum ato temerário quando eu tenha ido, mas assume
a causa do socialismo, já que eu me vejo obrigado a
abandona-la”.
Depois do enforcamento de seu esposo, Lucia
seguiu percorrendo o país, organizando as trabalhadoras e
escrevendo em jornais sindicais. Participou nas mobilizações
de 1890, quando se comemorou pela primeira vez o 1o
de Maio nos Estados Unidos.
Em junho de 1905 esteve presente na
constituição de Trabalhadores Industriais do Mundo (IWW,
pelas suas siglas em inglês), organização influenciada pelo
anarco-sindicalismo. Naquela oportunidade manifestou: “Tenho
tomado a palavra porque nenhuma mulher tem respondido, e
sinto que não estou fora de lugar para dizer do meu jeito
algumas poucas palavras sobre este movimento. Nós, as
mulheres deste país, não temos nenhum voto, nem ainda
desejamos utiliza-lo, e o único jeito de estar representadas
é tomar um homem para representar-nos. Vocês os homens têm
feito tal confusão na representação de nós que não temos
muito confiança em perguntar-lhes; e eu me sentiria estranha
ao pedir-lhe a um homem que me represente. Não temos nenhum
voto, só nosso trabalho... Somos escravas dos escravos.
Exploram-nos mais impiedosamente que aos homens. Onde queira
que os salários devam ser reduzidos, os capitalistas
utilizam as mulheres para reduzi-los, e se há qualquer coisa
que vocês os homens devem fazer no futuro, é organizar as
mulheres”.
O 15 de dezembro de 1911 realizou um balanço
sobre os efeitos da publicação "Os famosos discursos dos
Mártires de Haymarket", declarando que já tinha vendido 10
mil cópias ao tempo que anunciava uma sexta edição de 12 mil
exemplares. Em 1913, aos 60 anos de idade, foi detida pela
polícia de Los Ángeles. Um artigo seu dedicado aos Mártires
de Chicago, escrito em 1926, finalizava com as seguintes
palavras: “Descansem, camaradas, descansem. Todas as manhãs
são suas!”.
Aos 89 anos, Lucia seguia ativa, quando a
morte a surpreendeu em Chicago ao incendiar-se sua casa em
1942. Finalizavam 62 anos de militância feminista e
político-sindical, mas ainda que morta, a polícia a seguia
considerando uma ameaça, pois seus documentos pessoais foram
confiscados.
Outras mulheres vinculadas aos mártires
Nina Van Zaudt era uma rica herdeira que se
apaixonou por Augusto Vicent Theodore Spies aos poucos dias
de ter-se sentado este no banco dos réus. Gastou grande
parte de sua fortuna para poder casar-se com ele por
procuração, sem mais consolo que vê-lo detrás das grades da
cela. Escreveu a Autobiografia de Spies, e em seu pós
escrevia, referindo-se aos furiosos ataques que recebia por
parte dos jornalistas: “Orgulho-me de meus novos amigos, que
são pessoas capazes de apreciar um amor puro e
desinteressado”.
A esposa de Oscar Neebe -condenado a 15 anos
de prisão- morreu de desgosto ao conhecer a condenação,
deixando dois órfãos.
Lingg recebeu uma carta de sua mãe poucos
dias antes de sua morte, na qual, entre outras coisas, se
podia ler: “Eu também, como sabes, tenho lutado duramente
para ter pão para ti, para tua irmã e para mim mesma, e -tão
certo como que agora existo- depois de tua morte estarei
orgulhosa de ti como o tenho estado durante tua vida...
Declaro que si eu fosse homem, tivesse feito o mesmo que
tu”.
Uma tia de Lingg, que não tinha filhos, lhe
escreveu: “Querido Luis, aconteça o que acontecer -ainda que
seja o pior- não te mostres débil perante desses
miseráveis”.
Final esperançado
Faz anos visitei Chicago e quis conhecer a
Praça de Haymarket. Deparei-me com uma grande superfície de
cimento, sem nenhuma árvore ou outro atrativo e numa esquina
a estatua de um policial luzindo uniforme e capacete de
1886, com o braço estendido e a mão aberta no clássico sinal
de alto! Agora que as tropas estadunidenses se dedicam a
destruir estatuas no Iraque, confio que o povo siga o
exemplo e algum dia derrube a estatua desse policial,
substituindo-a pela de uma mulher... que bem poderia ser
Lucy Parsons.
Enildo Iglesias
© Rel-UITA
29 de abril
de 2004