Brasil

 

Cortadores de cana têm vida útil de escravo

em São Paulo

 

Pressionado a produzir mais, trabalhador atua cerca de 12 anos, como na época da escravidão Conclusão é de pesquisadora da UNESP; usineiros dizem que estão mudando sistema de contratação e que vão melhorar condições

 

O novo ciclo da cana de açúcar está impondo uma rotina aos cortadores de cana que, para alguns estudiosos, equipara sua vida útil de trabalho à dos escravos. É o lado perverso de um setor que, além de gerar novos empregos e ser um dos principais responsáveis pela movimentação interna da economia, deve exportar 7 bilhões de dólares neste ano. Ao menos 19 mortes já ocorreram nos canaviais de São Paulo desde meados de 2004, supostamente por excesso de trabalho. Preocupados com as condições de trabalho e com a repercussão das mortes, as usinas estão mudando o sistema de contratação desses trabalhadores, antes terceirizados.

A pesquisadora Maria Aparecida de Moraes Silva, professora livre docente da Universidade Estadual Paulista (UNESP), diz que a busca por maior produtividade obriga os cortadores de cana a colher até 15 toneladas por dia. Esse esforço físico encurta o ciclo de trabalho na atividade. "Nas atuais condições, passaram a ter uma vida útil de trabalho inferior à do período da escravidão", diz. Nas décadas de 1980 e 1990, o tempo em que o trabalhador do setor ficava na atividade era de 15 anos. A partir de 2000, "já deve estar por volta de 12 anos", diz Moraes Silva. Devido à ação repetitiva e ao esforço físico, "ele começa a ter problemas seriíssimos de coluna, nos pés, câimbras e tendinite", afirma.

Para o historiador Jacob Gorender, o ciclo de vida útil dos escravos na agricultura era de 10 a 12 anos até 1850, antes da proibição do tráfico de escravos da África. Depois dessa data, os proprietários passaram a cuidar melhor dos escravos, e a vida útil subiu para 15 a 20 anos. Moraes Silva, que desenvolve pesquisa com o apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) sobre os migrantes cortadores de cana, acaba de voltar do Maranhão e do Piauí, novos pólos de fornecimento de mão-de-obra para São Paulo.

Uma das constatações da professora é que a maior exigência de força física no trabalho está forçando a vinda cada vez maior de jovens. Aparecida de Jesus Pino Camargo, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Piracicaba (SP), diz que a maioria dos cortadores de cana está na faixa de 25 a 40 anos, mas que há cada vez mais jovens na atividade, com até 18 anos. Para a pesquisadora, o trabalhador anda de 8 a 9 km por dia, sempre submetido a um grande esforço físico, o que causa sérios problemas à saúde. "Esse trabalho tem provocado uma dilapidação -esse é o termo, não encontro outro- dos trabalhadores", afirma ela. Moraes Silva, porém, afirma que a situação começa a melhorar. Com pressão do Ministério Público, as usinas estão fazendo exames admissionais e adotaram várias medidas de proteção aos trabalhadores, diz.

"Tem de ter braço, se não morre de fome"

"Para ser cortador de cana, tem de ter braço, porque, se não tiver, morre, ou de fome ou no canavial, de tanto trabalhar." A afirmação é de José Lúcio Oliveira, 33, que veio de Barra do Santo Antônio (Alagoas) neste ano para estrear no corte de cana na região de Ribeirão Preto. Oliveira e os amigos Carlos João de Lima e Oziel Batista Silva acordam às 4h. Os três ocupam uma casa de dois cômodos em Pontal, com um banheiro sem iluminação e mobiliada apenas com um beliche, duas camas de solteiro, uma geladeira, um fogão, um aparelho de DVD e uma TV de 14 polegadas. Pagam R$ 120 (USD 60 aproximadamente) de aluguel.

A primeira atividade do grupo é preparar a marmita que será levada para o canavial. Geralmente, o cardápio do grupo é arroz, feijão, macarrão e um cozido de carne. Às 5h, a turma já está no ponto de ônibus, onde se junta a 45 homens e mulheres e embarca em direção ao canavial. Vestidos com calça comprida, jaleco de manga comprida, com camisa comprida por baixo, gorro para proteger o pescoço, chapéu ou boné, caneleiras para evitar picadas de cobras e cortes das escapadas do facão, botas, luvas e óculos, eles passam mais de seis horas sob o sol. Como ganha mais quem corta mais, os mais fortes e mais experientes no uso do facão saem ganhando.

Os homens chegam a cortar de 100 a 120m de cana por dia e ganham, em média, R$ 800 (USD 400 aproximadamente)por mês. Na última quinta, Oliveira disse que sentiu dores nas costas e só conseguiu cortar 60 metros. O grupo faz três paradas para comer o que levou na marmita: uma por volta das 7h15, outra às 10h e a última às 13h -a denominação bóia-fria vem do fato de que nas duas últimas refeições, o alimento está frio, apesar de algumas usinas fornecerem marmitas térmicas. Às 16h, voltam para a casa, cansados, sujos e famintos, mas ainda não é hora de descansar.

Enquanto Lima coloca as botas e luvas em um canto da casa e se prepara para lavar as roupas usadas no dia de trabalho, Oliveira, ainda usando o boné que o protegeu do sol no canavial, começa a preparar o jantar da turma e Silva entra no pequeno banheiro sem iluminação para o banho frio. Entre os afazeres, discutem o dia de trabalho, reclamam do cansaço e das dores no punho devido aos golpes seguidos do facão. Lima, do tanque de lavar roupa, conta que uma cobra quase o picou no canavial. O cozinheiro Oliveira prepara arroz, salsicha cozida, feijão e bifes. Antes, guarda um pouco para o almoço do dia seguinte.

Antes de comer, os trabalhadores saem em busca de diversão: se reúnem com outros cortadores para uma partida de futebol em campinho improvisado -a passadinha pelo bar para tomar uma cachaça, rotina para muitos bóias-frias, não é adotada pela turma de Oliveira. Depois do futebol, o trio volta para a casa, janta e vai dormir lá pelas 21h.

"Expulso" por pecuária e soja no NE, trabalhador busca canaviais

A expansão da cana no centro-sul está trazendo para São Paulo trabalhadores de regiões cada vez mais distantes. Antes proveniente de Minas Gerais e da Bahia, o novo migrante cortador de cana agora vem também do Maranhão e do Piauí. Maria Aparecida de Moraes Silva, da Universidade Estadual Paulista, foi a esses dois Estados para pesquisar sobre esses novos trabalhadores. Uma das suas descobertas é que eles são vítimas do próprio setor sucroalcooleiro. Com a expansão da cana no centro-sul e a valorização das terras, a pecuária dessa região está indo para áreas do Maranhão. A formação de novos pastos ocorre em áreas de babaçu, planta que dá sustento às famílias da região. Sem essa cultura regional, os trabalhadores são obrigados a vir para São Paulo para cortar cana. No Piauí, outra região alvo da pesquisa, os pequenos produtores são expulsos pelo cultivo da soja, produto que também foi em busca de áreas de menor preço devido à valorização no centro-sul.

A pesquisadora diz que a presença de cortadores de cana dessas regiões em SP é recente. Em 2000, o Maranhão mandou apenas uma centena de cortadores ao Estado. Nesta safra, apenas da pequena Timbiras virão 7.000 trabalhadores. Eles são arrebanhados pelo "gato", pessoa responsável pela seleção e até o custeio da vinda a São Paulo. O "gato" é imprescindível nesse trabalho e faz a ponte entre o trabalhador e as empresas. No Maranhão, ele é chamado de "agente de viagem para Ribeirão Preto".

Mauro Zafalon

Folha de São Paulo

3 de maio de 2007

 

N de E: Agradecemos Jair Krischke  del MOVIMENTO DE JUSTIÇA

              E DIREITOS HUMANOS, el envío de esta nota

 

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