A eventual recusa do pedido de
extradição do militar uruguaio Manuel
Cordero Piacentini, formulado pela
Argentina e pelo Uruguai, não somente
envergonha o Brasil, como pode ensejar a
responsabilidade internacional do Estado
brasileiro por ato do Poder Judiciário.
O julgamento desta ação pelo Supremo
Tribunal Federal (STF) foi suspenso por
um pedido de vista do Ministro Cesar
Peluso, ao atingir o triste
placar de 4 votos contrários e 1
favorável. Toma corpo, assim, uma
inaceitável obstrução à Justiça dos
países vizinhos que, diferentemente do
Brasil, cumprem a obrigação
internacional de julgar ou extraditar os
criminosos internacionais que se
encontram em seu território (aut dedere aut iudicare).
O coronel
Cordero foi um dos
protagonistas da Operação Condor, o
famigerado plano de cooperação entre as
ditaduras do Cone Sul. Preso no ano de
2007, em Santana do Livramento (RS),
tramitam contra Cordero ações
penais relativas a numerosos crimes,
entre os quais o seqüestro de crianças,
a tortura contumaz e o desaparecimento
forçado de cidadãos argentinos e
uruguaios. Note-se que, como tipo penal
próprio do direito internacional, o
desaparecimento forçado é crime contra a
humanidade, logo imprescritível e imune
a toda sorte de anistia.
Por conseguinte, causa estupefação o
voto do Relator do processo, Ministro
Marco Aurélio, ao vincular
diretamente a extradição de Cordero
à interpretação do alcance da lei
brasileira de anistia: "feridas das mais
sérias, consideradas repercussões de
toda ordem, poderão vir a ser abertas.
Isso não interessa ao coletivo. (...)
Deferida a extradição, abertas estarão,
por coerência, as portas às mais
diversas controvérsias quanto ao salutar
instituto da anistia".
Deplorável este voto, tanto por razões
políticas como jurídicas.
Primeiro, há uma partidarização
expressa: o Ministro visa diretamente à
castração da luta pela abertura dos
arquivos da ditadura militar no
Brasil, e pela responsabilização dos
agentes públicos que praticaram crimes
contra a humanidade naquele período.
Uruguay
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O
Relator
julga, portanto, não a extradição de
Cordero, mas o absurdo temor de que ela
seja aqui entendida como precedente.
Por infortúnio, já foi seguido pelos
Ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia
Rocha e Eros Grau - tendo apenas
Enrique Lewandowski optado pelo
deferimento.
No que atine ao direito, nossa
indignação se agiganta. Ora, a
extradição nada mais é do que o pedido
formulado por um Estado a outro, de que
este lhe entregue uma pessoa para que
responda a processo ou cumpra pena no
território daquele.
Unânime doutrina assegura não caber ao
Estado demandado explorar o mérito da
acusação, reservado exclusivamente à
Justiça do Estado que pede a extradição.
Para nosso profundo constrangimento, o
Relator pôs-se a tergiversar sobre a
natureza do crime de Cordero,
recorrendo, à la carte, a dispositivos
das leis argentina ou brasileira. Forja
a cizânia quanto ao tipo penal em
espécie, se seqüestro ou homicídio,
quando se trata obviamente de
desaparecimento forçado.
Retoma, ainda, a estéril discussão
positivista sobre a incorporação de
normas internacionais na ordem
brasileira, formalismo só lembrado
quando se trata de direitos humanos, eis
que o direito comercial de fonte
estrangeira aqui grassa livremente.
Que o Brasil possa julgar seus
criminosos internacionais é, sem dúvida,
assunto da alçada do STF, que responderá
perante a história pela posição que
tomar, se e quando for chamado a
fazê-lo.
Porém,
impedir
que os países vizinhos o façam,
deturpando um processo internacional
para atingir alvo interno, constitui uma
mácula imerecida para o Brasil em suas
relações internacionais.
O cúmulo do desalento é o epílogo do
voto do Relator: "a cegueira que cega
cerrando os olhos, não é a maior
cegueira; a que cega deixando os olhos
abertos, essa é a mais cega de todas (Padre
Vieira)". Faz lembrar Stanley
Kubrick e seu filme
Eyes
Wide Shut (no Brasil,
De olhos bem fechados) sobre o que há de insuportável na
verdade para quem se regala com o mundo
em que vive. Embora ver independa dos
olhos, os nossos estão bem abertos, em
vigília pelo direito à memória e à
justiça, imprescindível para que um dia,
de fato, a tortura e a execução sumária,
entre outros crimes, sejam abominados
por nossa cultura e apurados pela nossa
jurisdição.
Tarciso Dal Maso e Deisy
Ventura
Revista
Carta Capital
21 de
outubro de 2008
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