Há
mais de 40 anos na região, o bispo da Prelazia do Xingu se destaca por seu
trabalho em defesa da população e do meio ambiente amazônico, dedicação que
traz reconhecimento e ameaças de morte
Dom Erwin Kräutler* tem mais
de 40 anos de Amazônia. Nascido na Áustria, chegou ao Pará em 1965, mas já
sonhava com o Xingu desde menino, pois ouvia as histórias contadas em carta
por seu tio, então missionário na região. Em 1981, Erwin, já naturalizado
brasileiro, foi consagrado bispo, em substituição a seu tio, D. Eurico
Kräutler. Hoje, sua prelazia abrange municípios da fronteira agrícola
oriental como Altamira, Anapu, São Félix do Xingu, Tucumã e Ourilândia do
Norte, entre outras.
Por defender o meio ambiente
e lutar ao lado dos índios, trabalhadores rurais e comunidades
extrativistas, o bispo Erwin, também presidente do Conselho Indigenista
Missionário (Cimi), há muitos anos recebe ameaças de morte. A última delas
foi um aviso pelo telefone de que ele morreria no dia 29 de dezembro de
2006, ao comparecer a uma festa em São Benedito, em Gurupá (PA), município
do arquipélago de Marajó. Mesmo com a morte anunciada, ele cumpriu seu
compromisso anual de comparecer às comemorações do padroeiro da cidade,
escoltado por quatro policiais militares. "Há muito tempo recebo ameaças,
mas é a primeira vez que elas são feitas diretamente a mim", conta. O caso
já está em investigação pelo escritório da Polícia Federal de Altamira.
Até então, as intimidações
vinham de pessoas que declaravam ou escreviam direta ou indiretamente contra
ele, com frases como ‘o bispo do Xingu deve morrer'. Em outubro de 2006,
circulou uma carta anônima em Altamira (PA), que dizia que D. Erwin
pretendia ser "um mártir" e que queria apenas chamar a atenção da mídia. Ao
final, o texto da carta convidava a população a pedir na Câmara Municipal de
Altamira a transferência do religioso.
Do ponto de vista de
madeireiros, grileiros, escravagistas e poderosos da região, os
descontentamentos são muitos. D. Erwin identifica três deles, que teriam
originado as ameaças que vêm recebendo: a pressão para que se aprofundem as
investigações do assassinato da missionária Dorothy Stang, a campanha pela
não construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, e a denúncia
contra a rede de exploração sexual de meninas no município de Altamira (PA)
- que ele acredita ser "a gota d'água".
Justiça
Em suas declarações, D. Erwin
costuma citar o envolvimento do poder local com atividades ilícitas, como
trabalho escravo, exploração sexual de adolescentes, desmatamento e grilagem
de terras. "Só quebramos a corrente da impunidade com justiça", diz, com
firmeza. Entretanto, a justiça estadual, na opinião de D. Erwin, é
debilitada e incompetente.
artículo relacionado
Brasil 16-1-2007
Trabalho escravo
MPF denuncia esquema de "venda" de
escravos no Pará
Carta Maior |
Como exemplo de privilégios
recebidos por quem tem poder, ele cita o médico e ex-vereador Renato Martins
envolvido na rede de exploração de adolescentes de Altamira (PA). "Ficou
foragido e, quando resolveu se entregar à polícia, recebeu como ‘prêmio' a
liberdade por ter ‘colaborado com a Justiça!'", se revolta D. Erwin. Outro
caso é o assassinato da missionária Dorothy. Amiga de D. Erwin, ela atuava
em Anapu (PA), área da prelazia do bispo. Até hoje, quase dois anos depois,
ainda não se sabe quem são todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no crime. "Sabemos que há um consórcio de fazendeiros que
programou a morte da irmã. E essas pessoas estão soltas", revela. "Ela foi
realmente uma mártir, que dedicou sua vida à região e acabou pagando com a
vida, literalmente, para que o mundo olhasse para o Xingu como um ambiente a
ser preservado."
Se, por um lado, o trabalho
de D. Erwin traz perigos, por outro, o reconhecimento pelo seu trabalho em
defesa das populações locais e do meio ambiente cresce cada vez mais. Em
novembro de 2006, D. Erwin foi eleito presidente do Cimi, cargo no qual deve
permanecer pelo menos até julho quando haverá uma nova assembléia do
Conselho - na qual ele poderá ser reeleito. Em 22 de dezembro de 2006,
recebeu da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Pará o prêmio José Carlos
Castro de Direitos Humanos, por sua luta em defesa da vida na Amazônia. A
mesma homenagem já foi concedida a Dorothy Stang, três meses antes de seu
assassinato.
Além disso, ele já foi
homenageado com diversos prêmios no exterior, cidadania emérita em muitas
cidades do Pará e três doutorados honoríficos por seu trabalho em defesa dos
direitos humanos. "Também tenho recebido muitas manifestações da população,
que é muito carinhosa. Na rua, por e-mail e pelo telefone, as pessoas dizem
que me apóiam e estão comigo", lembra.
Desafios
De acordo com Erwin Kräutler,
terra e meio ambiente são os maiores problemas na região atualmente. "O
Xingu é a ultima fronteira ao avanço da devastação provocada por
madeireiras, grileiros e pecuaristas na Amazônia." Além do prejuízo à
natureza, o desmatamento acompanha outro mal: trabalho escravo. O último
relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre o trabalho
escravo no Brasil mostra que a concentração das propriedades rurais que
utilizaram trabalho escravo está exatamente na faixa do arco do
desflorestamento. São Félix do Xingu (PA), por exemplo, é um campeão de
desmatamento e de trabalho escravo.
"O trabalho escravo e a
superexploração têm que ser combatidos com fiscalização, que tem sido
insuficiente", analisa. Nessa região, um dos grandes problemas enfrentados
pelos auditores fiscais tem sido o deslocamento até o local das denúncias.
Muitas fazendas ficam distantes do centro das cidades e têm acesso difícil,
por estradas de terra. Na época das chuvas, vias se tornam intransitáveis.
Neste momento, o projeto de
construção da usina hidrelétrica de Belo Monte vem se juntar aos problemas
tradicionais da Amazônia. A crítica do bispo é a mesma de organizações,
movimentos locais e especialistas em energia: a total falta de transparência
na divulgação das informações por parte da Eletronorte, responsável pela
obra. "Não se fala nas conseqüências para a população local, de indígenas e
ribeirinhos. A idéia de que apenas uma barragem no rio Xingu é suficiente
para gerar o potencial que eles querem atingir é mentirosa", denuncia D.
Erwin.
Ele frisa que os defensores
da hidrelétrica - governo, empresários e comerciantes locais - falam apenas
nos benefícios que ela vai trazer, mas que ainda não houve um debate franco
sobre as possibilidades de o rio Xingu abrigar o projeto, bem como sobre os
prejuízos que o alagamento trará para as comunidades. "Até agora, a
Eletronorte não desmentiu o que dissemos, estão em silêncio. Então eles
concordam, pois não têm o que responder", conclui o presidente do Cimi.
O projeto vem desde a década
de 1980, com o nome Kararaô (ou Cacaraô). Em 2002, a Eletronorte
reapresentou a idéia, reformulada. "Não estou sozinho, não é o bispo que
está contra a obra. Diversas organizações e movimentos estão brigando para
que a hidrelétrica não seja construída", reforça Kräutler.
Esperança
O bispo deposita grande
expectativa na gestão da governadora Ana Júlia Carepa. "Conheço bem Ana
Júlia, sou próximo dela e conheço o seu trabalho. Como senadora, ela sempre
foi muito atenciosa e sempre levou adiante as nossas reivindicações,
inclusive leu no plenário minhas cartas", recorda. "Espero que ela continue
com esse pique, essa disponibilidade." D. Erwin deseja, sobretudo, que Ana
Júlia traga melhorias para o povo do Xingu. E que proteja a natureza, "a mãe
de todos nós".
Beatriz Camargo
Carta Maior
19 de janeiro de 2007
* Dom Erwin,
nascido na Áustria, mas naturalizado brasileiro há 30 anos
Foto:Viktor
Frankl Institut