A escravidão
contemporânea não é uma doença, mas sim o sintoma de um problema maior que se
manifesta na expansão do agronegócio. A erradicação dessa prática passa pela
mudança da lógica do modelo de desenvolvimento
No ano em que o etanol brasileiro virou vedete internacional
devido à busca por alternativas ao petróleo e o presidente Lula disse que
os usineiros estavam deixando de ser "bandidos" para se tornarem "heróis", o
país bateu o recorde de libertações de escravos em fazendas de cana-de-açúcar.
Como era de se esperar, o sucesso econômico ficou na mão de poucos e não se
traduziu em melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores. Pelo contrário:
dos 5.973 libertados da escravidão
pelo governo federal em 2007, 52% - 3131 - estava em atividades ligadas à
cana-de-açúcar nos
Estados do Pará, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Goiás, São Paulo e Ceará. Em
2006, houve o registro de 289 trabalhadores libertados no setor sucroalcooleiro,
e, no ano anterior, apenas em uma das ações 1.003 ganharam a liberdade, na
Destilaria Gameleira, em Confresa (MT). Em 2007, a cana ficou em primeiro lugar
no número de libertados devido à grande quantidade de mão-de-obra que utiliza.
Contudo, os pecuaristas continuam ocupando o topo do pódio em quantidade de
fazendas que escravizam.
A maior libertação do ano (e de todos os tempos) ocorreu na
fazenda e usina Pagrisa,
em Ulianópolis (PA). Em junho de 2007,
1.064 pessoas foram resgatadas da propriedade.
Políticos, como os senadores Flexa Ribeiro (PSDB-PA) e Kátia Abreu
(DEM-TO), e lideranças patronais pressionaram os auditores fiscais para que
fosse revista a autuação. Por conta disso, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
optou por interromper temporariamente as operações dos grupos móveis, levando a
manifestações e atos de apoio à fiscalização em todo o país. Na avaliação das
instituições da sociedade civil que atuam no combate ao trabalho escravo, o Caso
Pagrisa
acabou fortalecendo as instituições que atuam nessa área e trouxe novamente para
o debate temas como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Trabalho
Escravo, que prevê o confisco de terras em que o crime for encontrado e sua
destinação à reforma agrária.
Devido ao aumento da produção de etanol, o Ministério do
Trabalho e Emprego e o Ministério Público do Trabalho (MPT) promoveram
ações especiais para averiguar as condições de trabalho e fiscalizar o setor
sucroalcooleiro. Isso resultou em aumento do número de flagrantes. Ou seja, ao
mesmo tempo em que a expansão da cana para novas áreas estava gerando um aumento
nos casos de trabalho escravo, também uma demanda reprimida passou a ser
fiscalizada com mais intensidade neste ano, revelando uma situação precária em
regiões em que a cultura tem uma tradição histórica.
A incidência do trabalho escravo está concentrada nas regiões
de expansão agropecuária da Amazônia e do Cerrado. Contudo, há casos confirmados
nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, o
que demonstra que a origem desse fenômeno não está vinculada apenas à fronteira
agrícola, mas a outro elemento que perpassa realidades sociais diferentes. Que
elemento é este? O que garante que práticas que pareciam extintas, vinculadas a
modos de produção que aparentemente foram destruídos pelo avanço do capital,
continuem existindo?
Os relatórios de fiscalização do Ministério do Trabalho
mostram que os empregadores envolvidos nesse tipo de exploração não são pequenos
sitiantes isolados economicamente do restante da sociedade, mas na maioria das
vezes, latifundiários, muitos deles produzindo com tecnologia de ponta. Não
importa que a fazenda esteja escondida no meio da fronteira agrícola, ela estará
conectada pelo comércio ao sistema global e dele dependente. Prova disso são as
pesquisas de cadeias produtivas da ONG Repórter Brasil realizadas em 2004 e
2007: elas mostram como mercadorias produzidas em propriedades que utilizaram
mão-de-obra escrava são vendidas para a indústria e o comércio dentro e fora do
Brasil.
A utilização de trabalho escravo contemporâneo não é
resquício de modos de produção arcaicos que sobreviveram provisoriamente à
introdução do capitalismo, mas sim um instrumento utilizado pelo próprio capital
para facilitar a acumulação em seu processo de expansão. A superexploração do
trabalho, da qual a escravidão é sua forma mais cruel, é deliberadamente
utilizada em determinadas regiões e circunstâncias como parte integrante e
instrumento do capital. Sem ela, empreendimentos mais atrasados em áreas de
expansão não teriam a mesma capacidade de concorrer na economia globalizada. Por
conseguinte, o crescimento da oferta de produtos agropecuários no mercado seria
mais lento, o que reduziria o ritmo de queda dos preços das matérias-primas em
escala global, prejudicando o comércio e a indústria que demandam sempre mais
por menos.
Há condições sociais que facilitam a disponibilização de mão-de-obra
para essa pilhagem constante da força de trabalho. Em verdade, elas são
conseqüências do próprio sistema, como o crescimento do exército de reserva de
mão-de-obra que resulta da progressiva redução da participação relativa do
trabalho na composição do capital. Mas também do processo de grilagem e expulsão
de posseiros e de outras populações tradicionais de suas terras na região de
fronteira agrícola amazônica - freqüente durante o regime militar nas décadas de
70 e 80 e que se mantém ainda hoje - que serve tanto para aumentar o contingente
de mão-de-obra para o campo e as cidades, quanto para ampliar os territórios dos
empresários.
Isso, estruturalmente, gera um excedente alijado de meios de
produção e emprego, diminuindo o valor de mercado a ser pago por um serviço. Os
trabalhadores são impelidos a aceitar a oferta de serviço do "gato", mesmo não
recebendo garantias de que as promessas dadas no momento do recrutamento serão
cumpridas. Baseado nesse contexto de fragilidade social, promovido pelo próprio
capital, o capitalista pode utilizar a mão-de-obra necessária pagando o montante
que desejar. Que pode ser nada no caso do trabalho análogo ao escravo.
As propriedades rurais mais atrasadas do ponto de vista
tecnológico tendem a compensar essa diferença através de uma constante redução
da participação do "trabalho" no seu custo total. Simulam dessa forma uma
composição orgânica do capital de um empreendimento mais moderno, em que a
diminuição da participação do custo do trabalho através do desenvolvimento
tecnógico. Em outras palavras, há fazendeiros que retiram o couro do trabalhador
para poder concorrer no mercado. Outros se aproveitam dessa alternativa não para
gerar competitividade, mas para capitalizar-se durante um período de tempo (e
depois trocar trabalhadores por colheitadeiras) ou aumentar sua margem de lucro.
A escravidão contemporânea não é um desvio, portanto, e sim
mais uma aparente contradição do capital que utiliza formas que parecem negar a
sua própria natureza, ignorando assalariamento e o contrato social estabelecido
entre tomadores e vendedores de força de trabalho.
Parte do Estado tem desempenhado um importante papel nesse
processo ao garantir as condições estruturais e financeiras e segurança para
possibilitar o desenvolvimento econômico em situações e regiões de expansão
agropecuária e do extrativismo. Proprietários rurais que utilizaram mão-de-obra
escrava possuem representação política ou participam direta ou indiretamente das
decisões que protegem esse modelo.
Ao mesmo tempo, há setores do Estado que são atores
fundamentais no combate à escravidão. Os grupos móveis de fiscalização, formados
pelo Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e Polícia
Federal, têm atuado constantemente na libertação de escravos. E indenizações
milionárias contra fazendeiros vêm sendo concedidas pela Justiça do Trabalho
atendendo a ações de procuradores. No acumulado, de
1995 até o final de 2007, quando foi implantado
o sistema de combate ao trabalho escravo, 28.508 pessoas foram libertadas.
Contudo, isso é pouco. E não por conta da diferença entre
denúncias (50.564 entre 1996 e 2007) e libertações, mas porque, em nenhum
momento, o Estado tem atuado para desestruturar ou subverter o sistema que
produz as condições necessárias ao surgimento de escravos, como a concentração
de terras e de meios de produção no campo nas mãos de poucos.
O trabalho escravo contemporâneo não é uma doença, mas sim
uma febre, o sintoma de um problema maior que se manifesta na expansão ou
modernização de empreendimentos. Portanto, a sua erradicação não virá apenas com
a libertação de trabalhadores, equivalentes a um remédio anti-térmico -
necessária, mas paliativa. Erradicar o trabalho escravo contemporâneo passa por
uma mudança profunda que altere a lógica do sistema.
Nesse contexto, a Comissão Pastoral da Terra, o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, entre outros movimentos sociais, sindicatos de
trabalhadores rurais, associações de economia solidária e organizações
não-governamentais defendem a realização de uma ampla reforma agrária como
elemento fundamental no combate à escravidão.
A distribuição de terra não é a panacéia para o problema da
exploração do trabalho no país. Mas ela representa uma mudança na estrutura do
capital e no modelo de expansão do modo de produção. Mesmo que parcial, a
socialização dos meios de produção no campo significaria um pesado golpe no
capital que, direta ou indiretamente, se aproveita do exército reserva de mão-de-obra
disponível para superexplorá-lo.
Uma reforma agrária real não representaria o fim da
transformação de seres humanos em instrumentos descartáveis de trabalho. Mas
seria um sinal de que não precisaríamos esperar que a expansão do capital
absorvesse todas as realidades externas a ele, fechando por fim a última
fronteira agrícola do planeta e levando a um colapso do sistema. A classe
trabalhadora pode intervir na aparentemente inexorável marcha da história,
libertando-se dos que a escravizam e produzindo seu próprio destino.
Leonardo Sakamoto*
Repórter Brasil
24 de abril de 2008
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