Fiscalização do Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE) flagra crianças e
adolescentes trabalhando em abatedouros
municipais. Prefeituras de Nova Cruz,
João Câmara e São Paulo do Potengi
declaram ter tomado providências
Quando se lembra do cheiro de sangue, da agonia do boi morto
a marretadas em galpões sem as mínimas
condições sanitárias e do desespero de
crianças e adolescentes que trabalham em
matadouros do Rio Grande do Norte por
sobras de animais para suprir a
alimentação da família, a auditora
fiscal do trabalho Marinalva Cardoso
Dantas utiliza a expressão "circo de
horrores".
Algumas cenas registradas pela experiente Marinalva
-que atuou coordenando o grupo móvel do
trabalho escravo por nove anos- durante
as fiscalizações realizadas nos
municípios de Nova Cruz (março deste
ano), João Câmara e São Paulo do
Potengi (ambos no final de maio) foram
capturadas de modo sui generis: "Apontava
a câmera, fechava os olhos e apertava o
botão".
"O pai de uma das crianças dos municípios visitados declarou
que cria os filhos lá dentro e que vive
no matadouro desde os oito anos",
relata. Adolescentes "fazem" (laçam,
desferem marretadas, sangram, retalham,
tiram o couro e as vísceras) o boi sob a
supervisão dos marchantes (compradores
de gado vivo que revendem a carne para
consumo); crianças retiram as fezes das
tripas, recolhem o fel (bile) e fazem
qualquer tipo de serviço sujo em troca
de uma pelanca (sebo) ou um pedaço de
miúdo para colocar no feijão.
"Tivemos muita dificuldade para a abordagem às crianças,
porque todas corriam e se escondiam
quando nos aproximávamos, inclusive
fugiam para a rua", descreve
Marinalva no relatório sobre a
inspeção em Nova Cruz (RN). O ambiente
"hostil e violento", completa, não
chegou a impedir filmagens e a gravação
de depoimentos curtos de alguns dos
presentes, mas impossibilitou que a
fiscalização entrevistasse formalmente
as pessoas.
A fiscalização do matadouro municipal de Nova Cruz se deu por
conta de uma solicitação do Conselho
Tutelar do município. "Conversamos
primeiro com a Secretaria de Ação Social
do município. Como a situação continuava
do mesmo jeito, consultamos o Conanda [Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente] e depois tivemos que
acionar o Ministério do Trabalho e
Emprego", recorda Grécia Maria Vieira,
que faz parte do Conselho Tutelar de
Nova Cruz, que cumpre agora a difícil
tarefa de identificar os pais e
responsáveis dos jovens.
Em função do que se constatou em Nova Cruz, o promotor
Antonio Carlos Lorenzetti de Mello,
do Ministério Público Estadual do Rio
Grande do Norte, expediu a
recomendação de Número 2/2008, publicada
no dia 7 de maio de 2008 no Diário
Oficial do Estado. No
documento, Antonio Carlos aponta
medidas para que sejam cumpridas pela
prefeitura. O promotor pede que a
Secretaria de Ação Social do município
identifique e cadastre as crianças e
adolescentes envolvidas em atividades no
matadouro municipal em programas sociais
e solicita o fechamento do acesso aos
matadouros, restringindo o acesso
somente a pessoas com mais de 18 anos.
O promotor também recomenda a presença de uma guarnição do
Batalhão de Polícia Militar da região
(8º BPM) na entrada do matadouro nos
dias de abate, "tendo em vista o uso de
arma de fogo naquele local e, em
especial, a permanência de crianças e
adolescentes no matadouro". Por fim, o
documento pede providências (no prazo de
60 dias) no que diz respeito à
celebração de convênio com o Instituto
de Assistência Técnica e Extensão Rural
do Rio Grande do Norte (Emater),
órgão do governo estadual, para a
construção de um novo matadouro e uma
pocilga em terreno apropriado.
De acordo com João Severino da Cunha, chefe de
gabinete da Prefeitura de Nova Cruz, a
administração municipal tomou
providências logo que recebeu as
recomendações da promotoria. Ele admite
que o estabelecimento "arcaico" funciona
há mais de 30 anos e está completamente
"fora dos padrões do que exige a norma
de saúde e segurança do trabalho".
"Vamos fechar as portas do matadouro e construir um novo",
promete João Severino,
confirmando previsão do convênio com a
Emater. O terreno de 1 mil m2
localizado a 3 km do centro da cidade,
dotado de infra-estrutura de água e
energia elétrica, já foi adquirido,
garante o chefe de gabinete do prefeito
Cid Arruda Câmara (PMN). Falta
agora a licitação para a obra. "Apenas
com recursos próprios, fica difícil.
Pegamos a prefeitura muito defasada em
termos de estrutura e investimos no
hospital da cidade. Temos 35 mil
habitantes e é difícil melhorar todas as
áreas".
Segundo Grécia, do Conselho Tutelar, porém, as
crianças não entram mais, mas ainda
rondam o matadouro. "Não queremos que
eles fiquem nem por perto. Se isso
continuar, acionaremos a promotoria com
um pedido para que o matadouro seja
fechado".
O promotor Antonio Carlos conta que já tinha firmado
um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC)
com a prefeitura para que as crianças
fossem incluídas no Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil (Peti)
e diz que já solicitou novas
fiscalizações do MTE. O problema
dos matadouros, avalia, vai além do
trabalho infantil e envolve um conjunto
de lacunas graves nas questões
sanitárias, desde vacinação a guias de
transporte até o funcionamento de
matadouros clandestinos à venda em
feiras livres. Ou seja, a exploração do
trabalho infantil se encaixa a um
"mercado" paralelo.
Ele aposta, portanto, na construção dos novos matadouros no
convênio com a Emater como forma
de superação do quadro atual. E dá o
prazo de um ano para que o novo espaço
seja aberto. "Estabelecemos multa em
caso de descumprimento e o matadouro
pode até ser fechado. É uma questão
grave, mas que leva tempo para ser
solucionada", projeta.
Maurício Hashizume
Tomado de Reporter Brasil
12 de junho de 2008