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Aqüífero guarani:
reserva de preocupação |
Menos de 1% da água doce disponível no mundo
provém de fontes renováveis. Uma parte
considerável dessa porcentagem está sob os pés
de brasileiros, argentinos, uruguaios e
paraguaios. Na região que engloba o centro-sul
do Brasil, o nordeste argentino, o Uruguai e o
Paraguai localiza-se o Aqüífero Guarani, um
gigantesco manancial de bilhões de litros de
águas subterrâneas ainda pouco aproveitado. |
Ainda
não se sabe com exatidão quanto desses recursos pode
ser explorado e de que forma, mas já há polêmica em
relação ao assunto. Ambientalistas preocupam-se com a
sustentabilidade do aqüífero e com a soberania em
relação a ele, enquanto os recursos já estão sendo
utilizados nos quatro países.
De acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa
Ambiental e Agropecuária (Embrapa), a água ali contida
é de excelente qualidade e suficiente para abastecer a
atual população brasileira por 2.500 anos. É a maior
reserva de água doce subterrânea do mundo. Sua área se
estende por 1,15 milhão de quilômetros quadrados,
sendo a maior parte (71%) localizada sob território
brasileiro. Em seguida vem a Argentina, com 19%.
Paraguai tem 6% das águas do manancial e Uruguai, 4%.
No Brasil, ele atinge os estados de São Paulo, Mato
Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul,
Santa Catarina, Minas Gerais e Goiás.
O assunto está em alta. No último dia 15,
participantes do seminário internacional "Aqüífero
Guarani: gestão e controle social", que reuniu
representantes de organizações não-governamentais, de
centros de pesquisa e dos quatro governos, assinaram
uma carta sobre o reservatório. A "Carta de Foz do
Iguaçu sobre o Aqüífero Guarani" conclui que o
aproveitamento da água deve ser feito exclusivamente
para o abastecimento humano e consumo animal. Além
disso, exige o controle público desses recursos e a
soberania dos quatro países em relação a eles. Também
afirma a necessidade de implementação de políticas de
proteção ambiental. Uma semana depois, um dos
principais assuntos do Congresso da Associação
Brasileira de Águas Subterrâneas, que terminou no dia
22 de outubro, foi o aproveitamento do aqüífero.
"Não podemos fazer desse bem uma mercadoria", afirma
Christian Caubet, coordenador do programa de
pós-graduação em Direito da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) e presidente da Fundação Água
Viva. O professor se mostra preocupado com a
possibilidade de obtenção de lucro com a venda de água
prevalecer em relação ao abastecimento da população
dos quatro países. Segundo ele, o Acordo Geral Sobre
Comércio e Serviços, assinado pelo Brasil na
Conferência de Doha da Organização Mundial do Comércio
(OMC), é um perigo. O documento afirma a necessidade
de abertura de serviços públicos a agentes privados.
"Isso é muito preocupante", analisa. Para o professor,
a interferência da iniciativa privada nas políticas
públicas é um risco para a sustentabilidade da
reserva. Por isso pediu uma declaração formal dos
governos de que esses recursos, que ele prefere chamar
de "bens", não serão exportados ou cobrados antes que
as populações dos países sejam completamente
abastecidas. Algumas multinacionais, no entanto, já
exploram e comercializam água mineral proveniente do
manancial.
O secretário de Recursos Hídricos do Ministério do
Meio Ambiente, João Bosco Senra, que esteve presente
ao seminário, afirma que a declaração será feita em
breve. "Os países do Mercosul estão discutindo o
texto. Ele vai assegurar que os quatro países terão
soberania sobre o uso da água. Ela não poderá ser
considerada internacional".
Importância da água
A preocupação de Caubet é justificada pelo aumento do
número de empresas na região e pela importância
estratégica da água na atualidade. O relatório mundial
"Living Planet 2004", publicado no dia 21 de outubro
pela ONG WWF, mostra que o consumo de água está
aumentando no planeta enquanto as fontes estão
secando. De acordo com o documento, o consumo de água
no mundo dobrou nos 40 anos compreendidos entre 1961 a
2001. Por causa disso, alguns rios estão se
deteriorando, com o nível fluvial diminuindo. Esse é o
caso do Nilo, no Egito, e do Colorado, nos EUA. Ambos
são fonte de abastecimento humano e de irrigação de
agricultura.
Dados da Organização das Nações Unidas para Educação,
Ciência e Cultura (Unesco) mostram que os maiores
consumidores - quando englobados os usos industrial,
humano e agrícola - são Índia (552 bilhões de metros
cúbicos de água por ano), China (500 bilhões de metros
cúbicos por ano) e EUA (467 bilhões de metros cúbicos
por ano).
O Brasil possui o maior volume de água doce renovável
do mundo, com 6.220 bilhões de metros cúbicos capazes
de serem aproveitados. Ainda segundo a Unesco, embaixo
do solo encontra-se 97% da água doce em estado líquido
do mundo. O restante está em rios e geleiras. Esses
reservatórios são importantes, pois geralmente possuem
água de boa qualidade devido ao processo de filtragem
feito pelas rochas e a reações biológicas e químicas
naturais. Além disso, por não ficarem na superfície,
estão menos expostas a agentes poluentes.
O Aqüífero Guarani, de acordo com a Embrapa, tem
recarga de 140 bilhões de metros cúbicos por ano, mas
apenas 40 bilhões de metros cúbicos poderiam ser
utilizados, para que a sustentabilidade do lençol
freático fosse mantida. Não há dados de quanto já é
consumido. Apesar dos números grandiosos, há quem diga
ser necessário cuidado ao analisá-los. O coordenador
do Laboratório de Recursos Hídricos da Coppe-UFRJ
Paulo Canedo é um deles. "O Aqüífero tem uma grande
quantidade de água, mas não é essa maravilha toda.
Números não significam muito. Ele não é um mar
subterrâneo. Apesar de conexo, possui diferentes
profundidades. É preciso analisar a viabilidade de uso
e a capacidade de proteção do solo", diz. Entre os
estudos a serem feitos estão o custo de bombeamento, o
impacto dessa ação no subsolo e a possibilidade de
poluir a área. "Ao contrário de um rio, no Aqüífero,
se poluir uma vez, os detritos ficarão lá para
sempre".
Já há empresas explorando a área para retirar água
mineral, o que preocupa ambientalistas, assim como a
falta de informações precisas sobre a região. A dor de
cabeça aumenta ainda mais com a presença estrangeira.
"Existe um batalhão do exército dos EUA na tríplice
fronteira (entre Brasil, Argentina e Paraguai) que
oferece fotos de satélite do Aqüífero atualizadas a
cada minuto. Eles sabem mais do Aqüífero do que a
gente", alerta João Manoel Bicca, coordenador do
movimento Pró-Rio Uruguai - Aqüífero Guarani.
Poluição e uso controlado
Para ele, a situação do Aqüífero, hoje, é delicada.
"Não sou alarmista, mas existe uma relação entre as
áreas da superfície e as subterrâneas". Bicca se
refere ao mau planejamento do uso dos recursos e à
poluição nas áreas de recarga, que também correm o
risco de serem ocupadas. As áreas de recarga são onde
a água da chuva se infiltra para chegar ao
subterrâneo. Entre as ameaças a elas estão o uso de
agrotóxicos na agricultura, a presença de lixões e a
extração de minérios. "Existe um descontrole destes
fatores", lamenta o ativista.
A Embrapa Meio Ambiente já está desenvolvendo
pesquisas sobre o impacto da agricultura no Aqüífero,
mas até agora não conseguiu apontar nada de grave. "O
cenário é preocupante, mas ainda não há nada de
concreto em relação à poluição", afirma Marco Gomes,
técnico da estatal. Segundo ele, estudos já feitos não
mostraram nenhum indício de poluição. Ele, porém,
acredita que equipamentos mais precisos possam indicar
algo. De qualquer forma, defende o reordenamento da
produção agrícola das áreas próximas à recarga do
Aqüífero.
A empresa defende a adoção de um "ordenamento
agroambiental". As atividades menos danosas, como
apicultura e plantas nativas, ficariam mais perto do
leito do rio e as mais agressivas, como produções que
demandam agrotóxicos, mais distantes.
Outra ameaça é a perfuração de poços artesianos para
consumo e irrigação. "É necessário vigiar e
protegê-los. Cada poço é uma porta de problemas", diz
Gomes. No Brasil, São Paulo é o estado que mais
explora as águas subterrâneas. De acordo com a Sabesp,
65% da zona urbana do estado depende de alguma forma
desse tipo de extração.
Ribeirão Preto
Ribeirão Preto é um exemplo dessa dependência. Ela é a
única cidade de porte médio a ter todo seu consumo
suprido pelo Aqüífero Guarani. Seu uso, no entanto, é
questionado por Christian Caubet: "A cidade possui um
consumo muito alto, que demanda muito do Aqüífero. É
preciso rever esse padrão".
O Departamento de Água e Esgoto de Ribeirão Preto
(Daerp), por meio da assessoria de comunicação,
concorda que o consumo da cidade é alto, mas aponta
razões para isso. A cidade produz 13.400 m3 por hora,
sem contar poços particulares legais e clandestinos. O
órgão informa que a alta se deve ao clima quente e
seco da cidade. Para agravar, a época de seca coincide
com a de colheita da cana, principal produto agrícola
da região. Pouco antes de ser colhida, queima-se a
plantação, o que leva fuligem à área urbana. Além
disso, por ser uma cidade rica, o consumo é maior.
"Quanto mais rica uma região, maior a demanda por
qualquer serviço. Mas isso não significa que quem está
ao redor poderá fazer o mesmo", alerta Canedo.
Como saída para esse problema, o pesquisador propõe a
racionalização do uso da água por meio de campanhas
educativas e o aumento do controle de emissão de
poluentes da agricultura e de esgotos, mesmas soluções
apontadas pelo professor da UFSC. "A hora é essa. São
Paulo não planejou o uso e agora passa por
racionamentos constantemente", lembra o hidrólogo.
O Daerp afirma que 90% do esgoto de Ribeirão Preto é
coletado e 60% desse volume é tratado. A prefeitura já
estaria fazendo obras para aumentar o percentual de
tratamento. Além disso, está desenvolvendo programas
de conscientização.
Projeto internacional
Por ser uma cidade de médio porte (aproximadamente 500
mil habitantes) e praticar agricultura com grande uso
de agrotóxicos, Ribeirão foi escolhida para ser uma
das quatro regiões de estudo de um projeto
internacional de estudo do Aqüífero Guarani. Ele
pretende levantar todas as possibilidades de uso
desses recursos e obter dados precisos sobre a
quantidade de água disponível e custos de
aproveitamento. "O objetivo é produzir conhecimento",
resume o secretário-geral, Luiz Amore.
Além da cidade paulista, serão estudadas a paraguaia
Itapúa, devido à alta exploração agrícola e pecuária,
e a dupla Rivera (Uruguai)-Santana do Livramento (Rio
Grande do Sul), por causa da pequena população e do
histórico de poluição. Em 2002, alguns poços foram
fechados na cidade uruguaia por causa da contaminação
por nitrato. Há também problemas de saneamento nas
duas áreas. Enquanto 30% das casas de Rivera possuem
esgoto, no lado brasileiro o percentual é de 40%. A
cidade brasileira é totalmente abastecida pelo
Aqüífero, enquanto sua vizinha tem abastecimento
dependente do reservatório, variando entre 60% e 80%,
de acordo com a época do ano. O quarto objeto de
estudo será outra dupla de cidades. Concórdia, em
Santa Catarina e Salto, na Argentina, somam apenas 200
mil habitantes e utilizam as águas do Aqüífero em
áreas de lazer. Naquela localidade, o líquido atinge
altas temperaturas. Por isso é considerada a área de
maior potencial turístico do Aqüífero. "No Brasil,
quase não temos isso. Em Gramado e Canela (ambas no
Rio Grande do Sul), por exemplo, não existe exploração
termal e são cidades essencialmente turísticas",
lembra Bicca. Cada campo de análise foi escolhido após
debates com governos e representantes da sociedade
civil. No Brasil, por exemplo, houve cinco reuniões
nacionais com 176 entidades.
A pesquisa está sendo financiada por um consórcio
formado pelo Banco Mundial, pelo Global Environment
Fund (GEF), por governos locais e pela Organização dos
Estados Americanos (OEA). Ela começou em março de 2003
e terminará em 2007. Sua intenção é elaborar uma
proposta de modelo institucional, técnico e legal para
aproveitamento do Aqüífero.
O estudo é importante, dada a fragilidade legal dos
quatro países. Apenas o Brasil tem legislação prevendo
o uso sustentável de recursos hídricos. "Porém sua
base legal ainda é frágil e necessita ser mais
desenvolvida", ressalta o documento introdutório do
GEF. O Uruguai opera com um código de águas de 1979 e
não determina valor econômico para a água. A Argentina
prevê a posse de todos os recursos naturais pelas
províncias (estados), assim como o Paraguai. Nem os
organismos internacionais adotam mecanismos para
regular a posse de recursos hídricos subterrâneos.
A entidade internacional prevê ainda que, caso medidas
não sejam tomadas com rapidez, pode haver conflitos na
área pelo uso da água. "O uso descontrolado do
Aqüífero, sem regras ou regulação, pode mudar seu
status atual de uma reserva estratégica de água
potável para a população do Cone Sul para um foco de
degradação generalizada e conflitos entre países". O
secretário-geral do projeto, no entanto, afasta
qualquer hipótese de intervenção nas legislações
nacionais ou nas políticas públicas. "A dicussão sobre
a posse da água não está encerrada, mas há um
entendimento de que os recursos hídricos não são um
bem da humanidade e sim de cada país".
Todos os entrevistados desta reportagem descartam a
possibilidade de uma guerra entre os países do
Mercosul, mas alguns reclamam da falta de participação
da sociedade civil nas políticas internas. João Bicca
vai além e se queixa da falta de diálogo com o governo
brasileiro. "O secretário Senra até tem boa vontade e
tem se mostrado interessado, mas nunca fomos
procurados pelo Ministério do Meio Ambiente. Há um
silêncio constrangedor. Não queremos brigar
ideologicamente, pelo contrário: estamos abertos ao
diálogo pela causa nobre de preservar a água".
A Secretaria de Recursos Hídricos afirma estar
discutindo todos esses problemas internamente ou por
meio do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, onde
há espaço para ONGs. "A legislação existente precisa
de alguns ajustes", admite João Bosco Senra. Amore
concorda e explica que a maioria das leis sobre
recursos hídricos foi pensada somente em relação à
superfície. "Está na hora de mudar isso. Mas cada país
fará à sua maneira".
Algo com o que todos concordam é a necessidade de
conscientização da população sobre a importância da
preservação do Aqüífero Guarani. O governo afirma
estar elaborando cartilhas educativas sobre o assunto,
assim como as entidades da sociedade civil.
Luísa Gockel e Marcelo Medeiros
La Insignia
23 de outubro de 2004