Certamente Gilles Eric Seralini, o biólogo
responsável por uma pesquisa de longo prazo que
procurava provar a toxicidade do milho
transgênico NK 603 da Monsanto, gostaria que as
avaliações feitas sobre o seu trabalho por duas
agências governamentais francesas confirmassem
plenamente as suas conclusões. Não foi assim,
porém, de todas as formas, o cientista francês
se diz satisfeito: as duas instituições
reconheceram o fundamento de sua reivindicação
para a realização de pesquisas independentes,
transparentes e públicas sobre os OGM, nunca
realizadas.
Na segunda, 22 de outubro, foram divulgados
finalmente os esperados relatórios da Agência
Nacional de Segurança Sanitária (ANSES) e do
Alto Conselho de Biotecnologias (ACB),
encarregados pelo Estado francês de avaliar a
pesquisa de uma equipe da Universidade de Caen
dirigida por Seralini.
As duas agências coincidiram ao afirmar que o
trabalho de Seralini, procurando
demonstrar o alto nível de toxicidade do milho
NK 603, tinha deficiências metodológicas e suas
conclusões eram forçadas.
Os industriais, os lobistas dos OGM, têm
tudo a perder se forem feitos estudos de
longo prazo, sérios, transparentes,
independentes. Até agora conseguiram,
com a cumplicidade de algumas
instituições estatais e regionais,
ocultar os riscos destes produtos |
Entretanto as duas instâncias governamentais
francesas reconheceram neste trabalho o mérito
de ter sido o primeiro estudo em longo prazo
sobre um OGM. Admitiram, principalmente, ter
Seralini e sua equipe feito avanços de forma
suficientemente sólida, ainda que não
concludentes, porém suficientes para, a
partir daí, serem levantadas interrogativas
sérias não só sobre a variedade do milho
estudado mas também sobre os organismos
geneticamente modificados (OGM) em geral.
Além disso, ambas as agências coincidiram em
admitir a pertinência de uma das reivindicações
mais antigas de Seralini: a realização
de estudos “independentes, de longo prazo
[durante toda a vida das cobaias utilizadas e
não apenas por alguns poucos meses] e
transparentes” sobre os OGM, que sejam feitos
com verbas públicas, bem como seus resultados
difundidos.
Tanto a ANSES como o ACB, principalmente a
primeira, consideraram a pesquisa dirigida por
Seralini “insuficiente” para rebater
trabalhos anteriores que teriam assegurado a
inocuidade dos transgênicos, embora as condições
nas quais tais estudos anteriores foram feitos
deixassem muito a desejar, pois foram promovidos
e financiados pelas próprias empresas produtoras
dos OGM,
não se conhecer os detalhes básicos sobre a
metodologia utilizada, e a duração dos estudos
ter sido curta demais.
Progressos, apesar de tudo
Seralini
considerou as resoluções como um progresso,
porém lamentou o comportamento “desigual” de
ambas as instituições com relação a esta
temática. “Um dos critérios considerados para
invalidar o nosso trabalho foi sua fraca
potência estatística, sem considerarem o fato de
o estudo da Monsanto sobre o NK603 ter sido
avaliado sobre uma base estatística muito menor
que a nossa”.
“De qualquer forma demos um grande passo: o
reconhecimento oficial da necessidade de
pesquisas independentes e transparentes, feitas
com verbas públicas que, estranhamente até
agora, se destacaram por sua ausência.
Nada se sabe também sobre os
OGM
e sua pretendida inocuidade e, portanto, as
dúvidas colocadas são razoáveis. A meu ver, só
isto já bastaria para proibir a comercialização
de alimentos e de produtos, enquanto esses
estudos de fundo são realizados, pois seu efeito
sobre a saúde humana e o ambiente são ignorados,
pelo elementar princípio básico da precaução”,
disse o biólogo.
De fato, as avaliações da
ANSES
e da
ACB francesas forneceram argumentos tanto a favor como contra
os OGM
e não modificaram, com isto, os alinhamentos dos
cientistas, profundamente divididos neste tema.
Com uma vantagem relativa para os cientistas que
são contrários, se considerarmos as
fundamentações dos dois organismos sobre a
urgência de determinar “de forma puramente
científica” se os
OGM
são ou não são inócuos, e pela inexistência de
estudos sérios para se chegar a uma conclusão a
este respeito.
Segundo a revista parisiense Le Nouvel
Observateur, as duas agências francesas
citam um trabalho do pesquisador catalão José
Domingo, do Laboratório de Toxicologia e de
Saúde Ambiental, que em 2006 e em 2010 analisou
as pesquisas disponíveis internacionalmente
sobre o nível de toxicidade dos
OGM.
Em um artigo publicado pela revista
Environnemental Internacional, Domingo
apontava: “quinze anos transcorreram desde a
introdução de plantas geneticamente modificadas
na alimentação, e novos
OGM
foram sendo paulatinamente agregados aos
primeiros. (…) No ano de 2000 ficou bastante
evidente a ausência de estudos toxicológicos
publicados sobre os efeitos indesejáveis dos
OGM
sobre a saúde humana.
Em 2006, (…) reexaminamos a literatura
científica, e o número de referências
encontradas nas bases de dados continuava sendo
surpreendentemente limitado”. E isso continua
até agora.
Interrogando-se sobre as razões desta ausência,
Seralini pensa voltar à carga. Também
obteve a autorização da
ANSES
para ter acesso à análise determinada pelas
transnacionais sobre os produtos que elas mesmas
fabricam, até agora protegidos pelo “segredo
industrial”. Em paralelo, divulgará “dados
brutos” de seu próprio estudo, “para poder
comparar uns e outros”.
Lento porém seguro
“Passo a passo, talvez mais lentamente que o
desejável, conseguiremos, apesar de tudo, ir
avançando no conhecimento sobre um assunto
prioritário, mantido até agora pelos gigantescos
interesses econômicos na mais absoluta
escuridão”, disse outro dos integrantes da
equipe de Caen.
Pouco antes da divulgação dos estudos das duas
agências francesas, havia sido difundido outro,
da Agência Europeia de Segurança Alimentar, EFSA.
Suas conclusões eram similares, com relação à
“insuficiência” do estudo de Seralini, às que
chegaram ambas as
ANSES
e a
ACB, mas muito mais taxativas, não havendo nelas qualquer
sombra de dúvida sobre a inocuidade dos
OGM.
Valeu a pena todo o trabalho que
tivemos. Foi dado um passo fundamental:
colocar a questão, finalmente, na
discussão pública, depois de quase 20
anos de convivência cotidiana com
produtos dos quais muita gente não quer
nem que se fale. O silêncio, esperemos,
foi quebrado. |
Mas rapidamente este estudo caiu no
esquecimento, quando foi revelado que a suposta
composição independente da equipe que analisou a
pesquisa de Seralini não era tão
independente assim, e que dela participaram
cientistas ligados às empresas de sementes.
Nem tão curioso assim
Uma curiosidade neste caso foi a reação da
Associação Francesa de Biotecnologias Vegetais,
um suporte para o lobby em prol do OGM em seu
país, que se disse preocupada com as conclusões
da ANSES e do ACB.
“A proposta de [dos dois organismos públicos] se
realizar um novo estudo de longo prazo sobre o
milho NK 603 pode, no fundo, causar preocupações
nos consumidores” sobre os efeitos dos OGM, foi
a queixa da associação.
“Aí está o âmago do assunto: os industriais, os
lobistas dos OGM, têm tudo a perder em caso de
serem feitos estudos de longo prazo, sérios,
transparentes, independentes. Até agora, tinham
conseguido, com a cumplicidade de algumas
instituições estatais e regionais, ocultar os
riscos destes produtos. Se forem feitos os
estudos reivindicados, será muito mais difícil
para eles seguirem pela mesma via”, disse
Philippe Colin, da Confederação Camponesa da
França.
O estudo de Seralini, com todos os
defeitos possivelmente presentes, “teve
também o imenso mérito de por em questão algo
que jamais tinha sido examinado com atenção: a
combinação do OGM com os praguicidas como, por
exemplo, o Roundup, também fabricado pela
Monsanto”, acrescentou Colin.
“O debate progrediu: saiu do círculo formado por
especialistas e se manifestou na insuficiência
flagrante dos estudos realizados pelos
industriais quanto aos efeitos, no longo prazo,
dos OGM”, comentou Anaís Fourest, do
Greenpeace.
E Seralini ressaltou: “Valeu a pena todo
o trabalho que tivemos. Foi dado um passo
fundamental: colocar a questão, finalmente, na
discussão pública, depois de quase 20 anos de
convivência cotidiana com produtos dos quais
muita gente não quer nem que se fale. O
silêncio, esperemos, foi quebrado.”.
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